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Trabalho de cuidado no Brasil: uma carga desproporcional para as mulheres negras

Responsáveis pelo trabalho doméstico dentro e fora de casa, elas sofrem com dupla jornada, baixa remuneração e saúde fragilizada, consequência de um sistema desigual que naturaliza seu esforço invisível

Publicado: 18 Julho, 2025 - 11h07 | Última modificação: 18 Julho, 2025 - 12h24

Escrito por: Walber Pinto

CUT/Ahead
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No Brasil, a divisão do trabalho de cuidados não se caracteriza apenas pelas desigualdades de gênero e classe, mas também de raça. Neste contexto, as mulheres negras são as principais responsáveis por esse trabalho, tanto dentro de casa, quanto fora, no emprego doméstico remunerado. Essa sobrecarga tem impactado de forma estrutural a vida e a saúde mental das trabalhadoras.

De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado em março deste ano, 69,9% das pessoas que realizam trabalho doméstico e de cuidados remunerados no país são mulheres negras. Do total, 93,9% são mulheres e apenas 6,1%, homens. O levantamento aponta ainda que mulheres negras são as mais afetadas pela subutilização da força de trabalho. 

Na avaliação da psicóloga e psicanalista, Maria Lúcia da Silva, o trabalho doméstico e de cuidado está ligado historicamente com a escravidão, o que traz para as trabalhadoras negras, segundo ela, os principais transmissores da sobrecarga psíquica de mulheres negras no Brasil.

“Herdado da escravização, (o trabalho doméstico e de cuidado) ainda hoje é exercido majoritariamente por mulheres negras, seja no ambiente doméstico privado, seja como ocupação remunerada em condições precarizadas. Essa sobrecarga afeta a saúde mental de forma estrutural, produzindo exaustão crônica, sentimentos de desvalorização, depressão e ansiedade”, diz a psicanalista.

Em 2021, no auge da crise econômica e da pandemia de Covid-19, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), quase 43% das mulheres negras estavam nessa situação de subnotificação, contra 29% das mulheres brancas , segundo o Ipea.

Além disso, as trabalhadoras negras as mais impactadas pelo desalento, que é quando se quer trabalhar mais horas ou buscar emprego, mas enfrentam dificuldades.

Há diversos fatores que se relacionam com a sobrecarga do trabalho das mulheres negras, um deles é a violência doméstica. Segundo Maria Lúcia, essa situação coloca as trabalhadoras negras em posições de extrema vulnerabilidade, inclusive no âmbito doméstico.

“O racismo interseccionado ao machismo opera uma dupla invisibilização: são mulheres, portanto esperadas para "servir"; são negras, portanto consideradas fortes, resistentes, quase insensíveis. A violência doméstica não é, nesse cenário, apenas uma agressão individual. Ela é a expressão íntima de uma lógica colonial que retira dessas mulheres o direito à fragilidade e ao cuidado”, continua.

Pobreza e educação entre as mulheres negras

A psicóloga afirma que o trabalho doméstico, a desigualdade na educação e a pobreza entre mulheres negras se relacionam porque, segundo ela, o lugar social da mulher negra no Brasil foi moldado por séculos de escravização, seguido pela ausência de políticas reparatórias após a abolição.

Os dados do Ipea apontam que há essas diferenças na escolaridade. Mais de 50% das trabalhadoras domésticas negras não concluíram o ensino médio, contra 42,9% das não-negras, o que reforça a desigualdade por raça entre mulheres que desempenham a mesma atividade. 

“O tempo e a energia dedicados ao cuidado dos outros impedem que as mulheres negras invistam em sua própria formação, descanso e mobilidade social. O trabalho doméstico, nesse sentido, não é apenas um trabalho: é uma tecnologia de reprodução das desigualdades”, afirma Maria Lúcia.

O cuidado como direito humano

O tema do cuidado é um direito humano fundamental e uma necessidade vital. Em todas as fases da vida, as pessoas tanto recebem quanto prestam cuidados - tornando-o um bem público essencial para a sociedade, famílias, empresas e a economia. No entanto, no Brasil, essa responsabilidade recai desproporcionalmente sobre as mulheres, em um modelo de divisão do trabalho profundamente desigual.

Para a secretária nacional de Combate ao Racismo da CUT, Maria Júlia Nogueira, o trabalho doméstico e de cuidado sustenta a economia no país, mas é invisibilizado e desvalorizado. “Recai principalmente sobre mulheres negras, que enfrentam maior precariedade, menor remuneração e sobrecarga física e emocional. Precisamos de políticas públicas, creches públicas e valorização do trabalho doméstico remunerado. São temas urgentes para mudar essa realidade”.

Os dados do Ipea, que constam no artigo "O Cuidado Enquanto Ocupação: Em Que Condições?", mostram ainda que 79,6% das cuidadoras trabalham em domicílios familiares, o que evidencia a centralidade das famílias nesse tipo de cuidado.

O corpo da mulher negra é muitas vezes o último baluarte do cuidado de toda a sociedade, mas o primeiro a ser negligenciado
- Maria Lúcia
Quem cuida das trabalhadoras domésticas?

No Brasil, frequentemente, crianças mais velhas, em especial meninas, acabam cuidando dos irmãos menores. Já o cuidado de idosos ou pessoas com deficiência acaba sendo assumido por vizinhas ou parentes, sobrecarregando ainda mais essas redes informais de apoio.

Para cuidar dessas mulheres, na avaliação da psicanalista, as políticas públicas estruturadas e interseccionais são fundamentais para enfrentar as desigualdades que recaem sobre as mulheres, em especial às mulheres negras.

Ela cita, por exemplo, a expansão de creches e escolas públicas de qualidade, programas de renda básica, investimento em saúde mental, reconhecimento do trabalho do cuidado como atividade socialmente relevante e a divisão cotidiana do trabalho com todos os integrantes da casa, em especial os homens.

“Mais do que assistencialismo, é preciso construir políticas de reparação que reconheçam historicamente o papel dessas mulheres na sustentação do país e garantam meios para que possam viver com dignidade, autonomia e saúde. Como propõe a Cida Bento (psicóloga social, escritora e ativista), é preciso romper o pacto narcísico da branquitude que naturaliza a exploração da força de trabalho negra, e isso começa por reconfigurar o valor do cuidado como pilar de justiça social”, finaliza.