• Kwai
MENU

Valorizar o professor é essencial para fortalecer escola pública, diz Heleno Araújo

Pesquisa internacional aponta que 21% dos docentes consideram o trabalho muito estressante. CNTE alerta para a necessidade de políticas de valorização e cuidado com a saúde mental

Publicado: 15 Outubro, 2025 - 14h37 | Última modificação: 15 Outubro, 2025 - 14h55

Escrito por: Walber Pinto | Editado por: Rosely Rocha

Agência Brasil
notice

A educação pública brasileira enfrenta desafios que vão além da falta de estrutura e da valorização profissional. A crescente preocupação com a saúde mental dos professores e professoras e as recentes mudanças nas regras escolares como a lógica, centrada em números e taxas de aprovação, acabam atrapalhando e distorcendo o verdadeiro sentido da avaliação no processo de ensino e aprendizagem, e esses e outros fatores colocam o tema no centro do debate sobre o futuro da escola pública.

Para Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), os temas citados acima exigem atenção urgente. “Os professores estão cada vez mais sobrecarregados e estressados. A pressão por resultados, aliada a regras como a proibição do uso do celular em sala de aula, dificulta o ensino e afeta o bem-estar dos profissionais”, afirmou Heleno, em entrevista ao Portal CUT. (Confira a integra da entrevista abaixo)

De acordo com a Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem (Talis 2024), 21% dos professores afirmam considerar o trabalho “muito estressante”.

A sobrecarga de tarefas, a necessidade de manter mais de um emprego e a cobrança por resultados em avaliações externas, como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), agravam a situação.

“Há uma burocratização excessiva do trabalho docente, o que gera esgotamento e compromete a qualidade do ensino”, destaca Heleno.

Confira a entrevista

Portal CUT - De acordo com a Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem (Talis), realizada em 2024, 21% dos professores brasileiros perdem tempo de aula para manter a ordem. Na sua experiência como dirigente sindical e educador, esse número reflete a realidade da sala de aula?

Heleno Araújo - A pesquisa tem caráter estatístico e busca representar uma realidade ampla. No entanto, ainda enfrentamos grandes dificuldades no processo de ensino, especialmente no controle das turmas. É importante destacar que a maioria dos professores da educação básica é formada em cursos a distância, o que compromete a formação inicial.

Também há desafios no campo da didática: qual metodologia aplicar para atrair a atenção dos estudantes e utilizar de forma eficaz os 40 ou 50 minutos de aula?

As fragilidades na formação docente, as dificuldades em manter o controle da turma e o desinteresse dos estudantes por ambientes pouco motivadores acabam interferindo diretamente no aproveitamento das aulas. Portanto, embora a pesquisa indique certas tendências, na prática ainda enfrentamos problemas concretos no controle de sala.

Portal CUT – A pesquisa também apontou o mesmo índice de 21% de professores que consideram o trabalho muito estressante. Quais são as principais fontes desse estresse no dia a dia escolar?

Heleno Araújo - Uma pesquisa da CNTE em parceria com a Universidade de Brasília, realizada em 1999, já mostrava que um terço da categoria sofria da chamada “síndrome da desistência”, em razão da intensidade do trabalho. A docência exige atenção permanente — durante as aulas, nos intervalos e em todas as atividades — e envolve grande responsabilidade, tanto pedagógica quanto formativa.

Esse quadro se agrava pelo fato de muitos professores precisarem manter mais de um emprego, o que amplia a carga de trabalho.
Além disso, as avaliações externas que definem o IDEB e outras metas, muitas vezes associadas a gratificações e bônus, intensificam ainda mais a pressão sobre o professor.

A burocracia — como o preenchimento manual e digital simultâneo de diários de classe e o monitoramento constante das secretarias — também contribui para o esgotamento. Esse conjunto de fatores gera alto nível de estresse em boa parte da categoria.

Portal CUT - Como o estresse impacta a qualidade do ensino e o bem-estar dos professores?

Heleno Araújo - Desde 1999, já identificamos que um terço da categoria — cerca de 33% — sofrem com a chamada síndrome da desistência. Essa desistência impacta diretamente o processo de ensino e aprendizagem.

Hoje, na atividade do Conselho Nacional de Educação, aqui no Recife, ouvimos depoimentos de representantes de professores e de sindicatos relatando que há alunos da rede pública estadual, no 9º ano do ensino fundamental, que ainda não sabem ler nem escrever. Existe uma dificuldade imensa nesse processo.

O professor, ao se estressar, acaba relaxando e deixando de assumir seu compromisso de forma efetiva. Surge a percepção de que “o Estado quer que eu aprove todo mundo, então vou aprovar todo mundo”. Assim, ele acaba deixando passar de qualquer jeito, abandonando o seu papel e o seu trabalho — e, com isso, o estudante deixa de aprender.

O fato de termos apenas 52% das crianças alfabetizadas aos 7 ou 8 anos de idade é absurdo. A escola existe justamente para alfabetizar, e ter mais de 48% sem alfabetização demonstra que há algo muito errado nesse processo — e esse quadro está diretamente relacionado ao estresse do professor.

Portal CUT - Quais são hoje os principais desafios enfrentados pela educação pública brasileira em termos de qualidade e equidade?

Heleno Araújo - Creio que há três grandes indicadores de desafio para a escola pública. Vou começar pela avaliação.

Hoje existe uma avaliação externa feita de fora para dentro da escola — que impõe conteúdos e exige uma preparação constante para provas. São provas o tempo todo, com o objetivo de medir o desempenho em disciplinas como Matemática e Língua Portuguesa e gerar índices. Essa lógica, centrada em números e taxas de aprovação, acaba atrapalhando e distorcendo o verdadeiro sentido da avaliação no processo de ensino e aprendizagem.

Rever essa imposição de uma avaliação externa à escola é fundamental. É importante investir nesse modelo, pois ele propõe uma avaliação formativa, voltada à construção coletiva do conhecimento, envolvendo trabalhadores, professores e estudantes em um processo contínuo de ensino e aprendizagem.

O segundo ponto, que também influencia fortemente esse processo, é a ausência de práticas democráticas nas escolas. Precisamos, de fato, de uma gestão democrática. É necessário garantir a escolha dos representantes de turma, a criação de um conselho de representantes dentro da escola, o funcionamento efetivo do conselho escolar e a participação de professores e estudantes nos conselhos de classe. Além disso, o projeto político-pedagógico da escola deve ser aprovado por meio de uma assembleia escolar, fortalecendo as práticas democráticas e cidadãs no espaço educativo.

O terceiro grande desafio é o financiamento. Mesmo para implementar essas ações, é preciso que a escola tenha estrutura adequada e pessoal preparado — profissionais concursados, efetivos e devidamente formados. Para isso, é necessário realizar concursos públicos e assegurar financiamento suficiente para garantir condições adequadas de funcionamento, de modo que a escola pública possa cumprir sua tarefa e seu papel social.

Portal CUT - A pesquisa indica que 16% dos docentes relatam impactos negativos na saúde mental e 12% na saúde física. Que tipo de apoio psicológico ou institucional as redes de ensino poderiam oferecer para melhorar a saúde mental dos professores?

Heleno Araújo - Primeiro, é preciso acabar com a violência institucional que a nossa categoria sofre. Em segundo lugar, a formação dos professores é inadequada. Como já mencionei, a maioria das matrículas está concentrada em cursos a distância, oferecidos pelo setor privado, que em geral não garantem qualidade no processo de formação.

Portanto, atuar sobre a formação inicial é um fator essencial para cuidar bem da saúde mental e física do nosso corpo docente. Também é fundamental a realização de concursos públicos, pois a maioria dos professores trabalha sob contratos temporários e vive constantemente sob estresse. Qualquer atitude diferente pode resultar no fim do contrato e na perda do emprego. Essa insegurança gera um ambiente de trabalho extremamente desgastante.

Além disso, é preciso garantir salário digno e perspectiva de desenvolvimento na carreira, para que o profissional se sinta motivado a estudar, atualizar-se e aprimorar suas práticas pedagógicas. Em outras palavras, é necessário que o Poder Público cumpra as legislações educacionais vigentes, a fim de pôr fim a esse ataque institucional contra os profissionais da educação.

A partir disso, deve-se desenvolver um processo de formação continuada, que estimule a efetiva participação de todos os segmentos da escola no cuidado com o ambiente escolar. É importante que esse processo motive trabalhadores, estudantes, pais, mães e responsáveis a desenvolver um sentimento de pertencimento à escola, de modo que a instituição atue junto com a comunidade local, cumprindo um papel social relevante.

Portal CUT – Na semana passada o Senado aprovou o PLP nº 235/2019, que regulamenta o Sistema Nacional de Educação. Qual é a importância dessa aprovação para a organização da educação no Brasil?

Heleno Araújo - Olha, nós lutamos durante 36 anos para conquistar a lei do Sistema Nacional de Educação. Essa é uma lei prevista no artigo 23 da Constituição Federal, desde 1988. Realizamos diversas conferências de educação para debater o tema, por entender que o Sistema Nacional de Educação (SNE) deve contribuir fortemente para articular as ações entre os entes federados — municípios, estados, institutos federais e a União.

Entendemos que todos os entes federados têm responsabilidade sistêmica com a educação, ou seja, todos devem se comprometer desde a creche até a pós-graduação. É fundamental existir uma lei que oriente e regulamente o processo de colaboração e cooperação entre esses entes, garantindo o direito à educação para todas as pessoas e as condições necessárias para que qualquer cidadão possa estudar ao longo de toda a vida — desde a educação básica até o ensino superior.

No entanto, a lei que foi aprovada não dá conta disso. O PLP nº 235, que institui o Sistema Nacional de Educação, representa uma conquista importante, pois finalmente temos uma lei, mas o seu conteúdo é insuficiente. Ela não assegura de forma efetiva a cooperação e a colaboração entre os entes federados, não fortalece a gestão democrática, e não regulamenta o Custo Aluno-Qualidade (CAQ) — instrumento essencial para o financiamento adequado da educação básica.

Portanto, embora a lei tenha sido aprovada, na nossa avaliação, ela ainda é incompleta e carece de medidas estruturantes para transformar de fato a realidade educacional do país. É uma lei necessária e importante, pela qual lutamos durante décadas, mas que precisará ser aperfeiçoada em breve, pois, do jeito que está, não atenderá plenamente ao que sonhamos e desejamos para a educação pública no Brasil.

Portal CUT - A CNTE destacou que o Senado não avançou em pontos importantes, como a regulação da oferta privada e a responsabilização de gestores. Qual o impacto dessas omissões na efetividade do SNE?

Heleno Araújo - Só para ter uma ideia, a ausência de regulamentação do setor privado tem um impacto muito forte na educação básica. Como já mencionei, cerca de 80% dos cursos de formação de professores estão concentrados no setor privado, em instituições particulares. Além disso, 94% das matrículas nesses cursos são a distância.

Se não houver uma lei que regulamente esse processo no setor privado — especialmente no que diz respeito aos cursos de licenciatura —, continuaremos formando professores de maneira inadequada. Isso, por si só, já representa um impacto negativo na qualidade da educação.

Quando se aprova uma lei sem que haja responsabilidade efetiva do poder público — seja do presidente, dos governadores ou dos prefeitos — em cumpri-la, ela se torna apenas mais uma lei educacional que fica no papel. Sai do debate público, mas não sai do papel, porque não há implementação concreta.

Essa ausência de regulamentação nos leva a concluir que, embora a lei exista, ela não altera a realidade cruel que ainda marca a educação brasileira.

Hoje temos 47 milhões de matrículas na educação básica e reivindicamos qualidade social nessas matrículas — porque ela não existe de forma plena. É importante lembrar, porém, que ainda há cerca de 80 milhões de brasileiros e brasileiras que não tiveram acesso à escola ou não conseguiram concluir a educação básica.

É dever do Estado garantir esse direito. No entanto, da forma como foi aprovada, essa lei — que poderia ser um instrumento importante para assegurar esse direito — não dá conta disso: não regulamenta o setor privado, não estabelece responsabilidades claras para os gestores públicos, não regulamenta o Custo Aluno-Qualidade (CAQ) e, portanto, não aponta perspectivas positivas para mudar a realidade atual da educação brasileira.

Portal CUT - Diversos estados e municípios têm discutido ou implantado a proibição do uso de celulares nas escolas. Como você avalia essa medida?

Heleno Araújo - Essa medida já está regulamentada: há uma lei e diretrizes do Conselho Nacional de Educação que tratam do assunto. É importante destacar que ela não proíbe o uso do celular, mas restringe seu uso. A norma permite o uso pedagógico do celular, desde que essa utilização esteja prevista no projeto político-pedagógico da escola, no planejamento de aula do professor ou da professora, e que a escola possua as condições adequadas para atender a essas demandas.

Ou seja, o aluno pode levar o celular, mas ele deve permanecer guardado em local definido pela escola ou mantido na mochila, sem ser utilizado, exceto com autorização dos professores e professoras para fins pedagógicos. Essas regras devem ser claramente estabelecidas e organizadas pela equipe escolar.

Essa regulamentação também surgiu em resposta ao aumento dos casos de violência contra professores e professoras, uma vez que, em muitas situações, o simples ato de o professor pedir para o aluno guardar o celular tem gerado conflitos e até agressões. Agora, com uma lei federal, os profissionais têm respaldo jurídico para agir de acordo com as normas.

A medida foi bem aceita pela base. Ela estabelece restrições, mas preserva o uso pedagógico dos dispositivos. É essencial que a escola, de forma planejada e dialogada com todos os seus segmentos, defina quando o celular será utilizado em atividades pedagógicas e onde ficará guardado quando não estiver em uso — seja na mochila, seja em um espaço específico, sempre com o respeito dos alunos às regras estabelecidas.

Tudo isso faz parte da organização funcional da escola, baseada na legislação e nas diretrizes de regulamentação já aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação e homologadas pelo Ministério da Educação.

Portal CUT – Como a proibição do celular pode realmente melhorar a concentração e o rendimento dos alunos? Ou você acha que o problema é mais profundo, relacionado à metodologia de ensino e à motivação?

Heleno Araújo - Com certeza, o problema é muito mais profundo. Se eu te der o celular e você disser: “Agora eles estão brincando entre si, conversando entre eles, há uma interação maior entre os estudantes” — claro, isso é verdade. Mas isso não significa que os estudantes passarão a ter mais atenção nas aulas ou que isso melhorará os índices de aprendizagem. Aí já é outra questão, porque temos problemas muito mais estruturais nesse processo.

Temos salas de aula quentes demais, superlotadas, escolas sem equipamentos e sem estrutura adequada. Há escolas integrais que funcionam o dia todo apenas com aulas expositivas no quadro, sem laboratório, sem espaços que permitam desenvolver uma formação verdadeiramente integral dos estudantes. Portanto, há problemas profundos que vão muito além do uso do celular.

Não é simplesmente retirando o celular das mãos dos estudantes durante as aulas que vamos alterar o processo de aprendizagem. Isso é muito pouco diante dos desafios que enfrentamos.

Precisamos de maior investimento, de um quadro de pessoal completo, de melhor infraestrutura escolar, de mudanças no processo de avaliação e de uma gestão democrática e participativa, que promova o exercício efetivo da cidadania.

É um conjunto de medidas que ainda não conseguimos implementar nas escolas públicas do país — e que precisam ser pensadas, tratadas e aplicadas para que possamos alcançar resultados positivos no processo de ensino e aprendizagem da educação pública brasileira.