Presença de mulher
Portal seleciona cinco reflexões do livro "Espelhos", de Eduardo Galeano
Publicado: 08 Março, 2009 - 00h00

Diz a apresentação: "Os espelhos estão cheios de gente. Os invisíveis nos vêem. Os esquecidos se lembram de nós. Quando nos vemos, os vemos. Quando nos vamos, se vão? Este livro foi escrito para que eles não se percam. Nestas páginas se unem o passado e o presente. Os mortos renascem, os anônimos têm nomes: os homens que construíram os palácios e os templos de seus amos; as mulheres ignoradas por aqueles que ignoram os próprios temores; o sul e o oriente do mundo, desprezados por aqueles que desprezam as próprias ignorâncias; os muitos mundos que o mundo contém e esconde; os pensadores e sentidores; os curiosos, condenados a perguntar; e os rebeldes e os perdedores e os loucos lindos têm sido e são o sal da terra".
Boa leitura.
Mudança de nome
Aprendeu a ler lendo números. Brincar com números era o que mais a divertia e de noite sonhava com Arquimedes.
O pai proibia:
- Isso não é coisa de mulher - dizia.
Quando a Revolução Francesa fundou a Escola Politécnica, Sophie Germain tinha dezoito anos. Quis entrar. Fecharam as portas na sua cara:
- Isso não é coisa de mulher - disseram.
Por conta própria, sozinha estudou, pesquisou, inventou.
Enviava seus trabalhos, por correio, ao professor Lagrange. Sophie assinava Monsieur Antoine - August Le Blanc, e assim evitava que o exímio mestre respondesse:
- Isso não é coisa de mulher.
Fazia dez anos que se correspondiam, de matemático a matemático, quando o professor soube que ele era ela.
A partir de então, Sophie foi a única mulher aceita no masculino Olimpo da ciência européia: nas matemáticas, aprofundando teoremas, e depois na física, onde revolucionou o estudo das superfícies elásticas.
Um século depois, suas contribuições ajudaram a se tornar possível, entre outras coisas, a torre Eiffel.
A torre tem gravados os nomes de vários cientistas.
Sophie não está lá.
Em seu atestado de óbito, de 1831, aparece como dona de casa e não como cientista:
- Isso não é coisa de mulher - disse o funcionário.
As idades de Ada
Aos dezoito anos, foge nos braços de seu preceptor.
Aos vinte, se casa, ou é casada, apesar de sua notória incompetência para os assuntos domésticos.
Aos vinte e um, se põe a estudar por conta própria, lógica matemática. Não são as tarefas mais adequadas para uma dama, mas a família aceita seu capricho, porque talvez assim possa cair em si e salvar-se da loucura à qual está destinada por herança paterna.
Aos vinte e cinco, inventa um sistema infalível, baseado na teoria das probabilidades, para ganhar dinheiro nas corridas de cavalo. Aposta as jóias da família. Perde tudo.
Aos vinte e sete, publica um trabalho revolucionário. Não assina com seu nome. Uma obra assinada por uma mulher? Essa obra a transforma na primeira programadora da história: propõe um novo sistema para ditar tarefas a uma máquina que poupa das piores rotinas os operários têxteis.
Aos trinta e cinco, cai doente. Os médicos diagnosticam histeria. É câncer.
Em 1852, aos trinta e seis anos, morre. Nessa mesma idade tinha morrido seu pai, lorde Byron, poeta que ela não conheceu.
Um século e meio depois, se chama Ada, em sua homenagem, uma das linguagens de programação de computadores.
Flora
Flora Tristán, avó de Paul Gauguin, errante militante, peregrina da revolução, dedicou sua turbulenta vida a lutar contra o direito de propriedade do marido sobre a mulher, do patrão sobre o operário e do amo sobre o escravo.
Em 1883, viajou ao Peru. Nos arredores de Lima, visitou um engenho açucareiro. Conheceu os moinhos que trituravam a cana, as caldeiras que ferviam o melaço, a refinaria que fazia açúcar. Por todos os lados viu escravos negros que iam e vinham, trabalhando em silêncio. Nem perceberam a sua presença.
O dono disse a ela que tinha novecentos. Em tempos melhores tinha tido o dobro:
- É a ruína - se queixou.
E disse tudo o que estava previsto que dissesse: que os negros eram folgazões como os índios, que só trabalhavam na base do açoite, que...
Quando já estava indo embora, Flora descobriu um cárcere num lado da plantação.
Sem pedir licença, entrou.
Ali, na fechada sombra do calabouço, conseguiu distinguir duas negras nuas, agachadas num canto.
- Não são nem animais - desprezou o guarda. - Os animas não matam seus filhotes.
Aquelas escravas tinham matado seus filhotes.
As duas olharam aquela mulher, que as olhava do outro lado do mundo.
Concepción
Passou a vida lutando com alma e vida contra o inferno dos cárceres e pela dignidade das mulheres, presas nos cárceres disfarçados de lares.
Contra o costume de absorver generalizando, ela chamava o pão de pão e o vinho de vinho:
- Quando a culpa é de todos, não é de ninguém - dizia.
E assim ganhou um bocado de inimigos.
Embora com o tempo seu prestígio tenha se tornado indiscutível, em seu país custavam a acreditar nisso. E não só em seu país: em seu tempo também.
Lá por 1840, Concepción Arenal tinha assistido aos cursos da Faculdade de Direito, disfarçada de homem, o peito amassado por um espartilho duplo.
Lá por 1850 e pouco, ela continuava se disfarçando de homem para poder freqüentar as tertúlias madrilenhas, onde eram debatidos temas impróprios em horas impróprias.
Lá por 1870 e tanto, uma pretigiosa organização inglesa, a Sociedade de Howard para a Reforma das Prisões, nomeou-a representante na Espanha. O documento que a designou foi expedido em nome de Sir Concepción Arenal.
Quarenta anos depois, outra espanhola, Emília Pardo Bazán, foi a primeira mulher catedrática numa universidade espanhola. Nenhum aluno se dignava a escutá-la. Dava aulas para ninguém.
Duas rainhas
Pouco antes de morrer, a rainha Vitória teve a alegria de incorporar outra pérola à sua povoada coroa. O reino ashanti, vasta mina de ouro, passou a ser colônia britânica.
Aquela conquista havia custado várias guerras, durante um século inteiro.
A batalha final começou quando os ingleses exigiram que os ashantis entregassem o trono sagrado, onde morava a alma da nação.
Os ashantis eram muito belicosos, e era melhor perdê-los que encontrá-los, mas foi uma mulher quem encabeçou a batalha final. A rainha mãe, Yaa Asantewaa, desalojou os chefes guerreiros:
- Onde está a valentia? Em vocês, não está.
Foi dura a briga. Após três meses, os canhões britânicos impuseram suas razões.
Vitória, a rainha triunfante, morreu em Londres.
Yaa Asantewaa, a rainha vencida, morreu longe de sua terra.
Os vencedores nunca encontraram o trono sagrado.
Anos depois, o reino ashanti, chamado de Gana, foi a primeira colônia da África negra que conquistou a independência.