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O Haiti e nós

CUT elabora documento sobre a história do país: um terremoto de 200 anos

Publicado: 23 Fevereiro, 2010 - 19h13

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Aproveitando-se do caosprovocado pelo terremoto que devastou o Haiti no dia 12 de janeiro, ceifandomais de 200 mil vidas, o governo dos Estados Unidos enviou ao país novocontingente com 10 mil soldados em frota comandada por porta-aviões nuclear.

Após ocuparem o aeroportoda capital, Porto Príncipe, epicentro da tragédia que concentrou energiaequivalente a 25 bombas atômicas em um único minuto, as tropas impediram odesembarque de médicos, equipes de resgate, hospitais de campanha, remédios ealimentos, que tiveram de ser desviados para a República Dominicana, partedireita da ilha Hispaniola, informou a Cruz Vermelha Internacional. Conformealertou o Programa de Alimentos da ONU, em meio à necessidade do socorroimediato, inúmeros produtos também não conseguiram chegar a tempo, pois amaioria dos voos foram utilizados para os militares dos EUA. Enquanto isso,agonizavam os 250 mil feridos, os mais de 4 mil mutilados físicos, os 1,5milhão de novos desabrigados...

O número de militaresianques – 17 mil - já supera em dois mil o de toda a força de paz da ONU,constituída por 36 nacionalidades, e expõe práticas imperialistas que têm sidoa regra contra a democracia e a soberania.

Enquanto não param dechover tropas de ocupação, conforme o Robert F. Kennedy Memorial Center, “aágua é a principal causa de mortalidade infantil e doenças nas crianças. OHaiti agora tem a mais alta taxa de mortalidade infantil do HemisférioOcidental. Mais da metade de todas as mortes no Haiti foram devidas a doençasgastro-intestinais transmitidas através da água”.

Diante de dados tãoeloquentes, a Central Única dos Trabalhadores reafirma: “O que o Haiti precisaé de médicos, enfermeiros, engenheiros e não de tropas de ocupação, seja dosEUA, seja da ONU”. “A situação atual no Haiti não é uma fatalidade, é frutohistórico da superexploração e pilhagem das grandes potências, como a França eos EUA, do país que se constituiu na primeira nação negra independente do mundoem 1804”, enfatiza o documento.

A magnitude da tragédia emum país de nove milhões de habitantes, denuncia a CUT, “é resultado dascarências e precárias condições de infraestrutura e das habitações, em umasituação em que o desemprego atingia mais de 60% dos trabalhadores/as e ossalários são de miséria, enquanto o governo do Haiti pagava mensalmente milhõesde dólares de dívida externa”. “O fato de não haver hospitais, nem meios detransporte, nem serviços públicos organizados, não é um fenômeno ‘natural’, é oresultado de uma política aplicada anos a fio sob a disciplina do FMI e embenefício das grandes potências que apoiaram a ditadura Duvalier até 1981 edepois o golpe de Estado que tirou do poder o presidente Aristide em 2004”,sublinha o documento da Executiva Nacional.

Agora, para colocar ordemna casa, a secretária de Estado Hillary Clinton apareceu em Porto Príncipe parasugerir mais poder ao presidente Préval, como o de decretar toque de recolher:“um decreto assim lhe daria uma autoridade enorme, que seria delegada aos EUA”.O governo Obama vê o Haiti da mesma forma que seus antecessores, como quintal,que rapidamente pode ser transformado em cemitério, como o fizeram durante asustentação das sanguinárias ditaduras de François Duvalier, o Papa Doc, e deseu filho Baby Doc, que produziram entre 30 a 60 mil cadáveres de oposicionistascom os tristemente célebres Tonton Macoutes, os esquadrões da morte do regime.

Conhecer a história destaque foi a nação mais rica do Hemisfério Norte, como descreveu Voltaire noséculo 18, por seu ouro negro, por seus escravos, é refletir sobre a nossaprópria trajetória, é denunciar o acosso do poder econômico e militar dos EUA ede outros desde a sua independência.

Com o objetivo de queganhe vida nas salas de aula, o texto a seguir é uma compilação da rica eintensa história do povo haitiano pela liberdade, trazendo contribuiçõesimprescindíveis de estudos e artigos já publicados por Carlos Lopes, EduardoGaleano e Saul Leblon na Revista do Brasil, no jornal Hora do Povo e na AgênciaCarta Maior.

A CUT conclama ossindicatos filiados, ramos e CUTs estaduais a divulgarem o mais amplamente oartigo abaixo e a contribuir com depósitos no Banco do Brasil, Agência 3324-3conta corrente 956251-6 (SOS Sindical Haiti), encarregando-se a CUT nacional defazer chegar às organizações sindicais com as quais mantém relação osdonativos.

Propomos também aorganização de brigadas de trabalhadores cutistas para ajudar na reconstruçãodo Haiti, em especial do movimento sindical haitiano. A CUT, além de assumirsua responsabilidade na ajuda direta ao movimento sindical haitiano, se declaradisposta a participar de iniciativas unitárias, com outras centrais emovimentos populares para reforçar a solidariedade aos trabalhadores e ao povodo Haiti neste momento difícil.

Confira abaixo o documento ou clique no link a seguir para imprimir PDF: Haiti

Umterremoto de duzentos anos

“Paraos 9 milhões de haitianos, a história tem sido uma sucessão de terremotossociais que sedimentaram nessa ilha do Caribe a maior taxa de pobreza daAmérica e uma das piores do planeta, 70% da população está abaixo da linha dapobreza e 52% são analfabetos. No Haiti, antes do terremoto, já existiam 3,8milhões de crianças subnutridas”. SaulLeblon

“De1825 a 1947, a França forçou o Haiti a pagar uma taxa anual para reembolsar oslucros perdidos pelos senhores de escravos franceses, causados pelobem-sucedido levante de escravos. Ao invés de escravizar haitianosindividualmente, a França considerou mais eficiente simplesmente escravizar anação inteira”. GregPalast

“OsEstados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934.Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objetivos: cobrar as dívidas doCity Bank e abolir o artigo constitucional que proibia vender plantações aosestrangeiros”. Eduardo Galeano

“Oque Papa e Baby Doc não dizimaram, o FMI deu cabo através dos seus planos de‘austeridade’. Um plano de austeridade é uma forma de vodu orquestrada poreconomistas-zumbis crentes na irracionalidade de que o corte dos serviçospúblicos de algum modo ajudará uma nação a prosperar”. Greg Palast

“OHaiti não é um país pobre, é um país empobrecido”. Henry Boisrolin

 

O professor de Direito daLoyola University New Orleans, William Quigley, lembra que se o terremoto de 12de janeiro de 2010 foi trágico, infelizmente mantém a mesma irracionalidade deuma lógica que perdura há mais de dois séculos. Mais precisamente desde 1804,quando o país decidiu ser independente.

Quigley recorda que “hámais de 200 anos os EUA têm se esforçado para quebrar o Haiti” e que, por umaquestão de justiça, é necessário que sejam feitas reparações. “Os EUA devemBilhões - com B maiúsculo - ao Haiti. Os EUA usaram o Haiti como uma‘plantation’. Os EUA ajudaram a sangrar o país economicamente desde que ele selibertou, repetidamente invadiram o país, apoiaram ditadores que abusaram daspessoas, usaram o país como alvo de dumping para nossa própria vantagemeconômica, arruinaram suas estradas e agricultura, e derrubaram as autoridadeseleitas pelo povo. Os EUA até usaram o Haiti como os velhos latifundiários das‘plantations’ [isto é, os senhores de escravos], baixando ali para diversãosexual.”

“Em 1804, quando o Haiticonquistou sua liberdade da França, na primeira revolução de escravos bemsucedida no mundo, os Estados Unidos recusaram-se a reconhecer o país. Os EUAcontinuaram se recusando a reconhecer o Haiti por mais 60 anos. Por quê? Porqueos EUA continuavam a escravizar milhões de seus próprios cidadãos e temiam que,se reconhecessem o Haiti, encorajariam a revolução dos escravos nos EUA.

“Depois da revolução de1804, o Haiti foi alvo, pela França e pelos EUA, de um mutilante embargoeconômico. As sanções americanas duraram até 1863. A França, enfim, usou seupoder militar para forçar o Haiti a pagar indenizações pelos escravoslibertados. As indenizações foram de 150 milhões de francos. (A França vendeutodo o território da Louisiana aos EUA por 80 milhões de francos!).

“O Haiti foi forçado atomar dinheiro emprestado nos bancos da França e dos EUA para pagarindenizações à França. Um grande empréstimo aos EUA foi feito em 1947 paraquitar a dívida com os franceses. Qual o valor atual do dinheiro que o Haitifoi forçado a pagar aos bancos franceses e dos EUA? Mais de 20 Bilhões – com Bmaiúsculo - de dólares.

“Os EUA ocuparam egovernaram o Haiti pela força de 1915 a 1934. O presidente Woodrow Wilsonenviou tropas para invadi-lo em 1915. As revoltas dos haitianos foram esmagadaspelos militares americanos – que mataram, somente em um confronto, mais de doismil haitianos. Nos dezenove anos seguintes, os EUA controlaram as alfândegas doHaiti, cobraram impostos e mandaram em muitas das instituições governamentais.Quantos bilhões foram sugados pelos EUA durante esses 19 anos?

“De 1957 a 1986, o Haitifoi forçado a viver sob os ditadores sustentados pelos EUA, ‘Papa Doc’ e ‘BabyDoc’ Duvalier. Os EUA apoiaram econômica e militarmente esses ditadores porqueeles faziam o que os EUA queriam e eram politicamente ‘anticomunistas’ – o queagora se traduz como contra os direitos humanos de seu povo. Duvalier rouboumilhões do Haiti e contraiu uma dívida de centenas de milhões, que o Haitiainda deve... As estimativas são de que o Haiti deve US$ 1,3 bilhão de dívidaexterna e que 40% dessa dívida foi contraída pelos Duvaliers, sustentados pelosEUA.

“Trinta anos atrás, oHaiti não importava arroz. Hoje, o Haiti importa quase todo o seu arroz. Aindaque o Haiti tenha sido a florescente capital do açúcar do Caribe, agora tambémimporta açúcar. Por quê? Os EUA e as instituições financeiras mundiais dominadaspelos EUA – o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial – forçaram oHaiti a abrir os seus mercados para o mundo. Então, os EUA promoveram o dumpingno Haiti com milhões de toneladas de arroz e açúcar americano a preçosubsidiado – destruindo os agricultores e levando à ruína a agriculturahaitiana. Ao arruinar a agricultura haitiana, os EUA forçaram o Haiti atornar-se o terceiro maior mercado mundial do arroz americano. Bom para osfazendeiros americanos, mau para o Haiti.

“Em 2002, os EUA bloquearamcentenas de milhões de dólares em empréstimos ao Haiti que seriam utilizados,entre outros projetos públicos como educação, para estradas. São essas asmesmas estradas que agora as equipes de socorro têm tido tanta dificuldade depercorrer!

“Em 2004, os EUA outra vezdestruíram a democracia no Haiti, quando apoiaram o golpe contra o presidenteAristide, eleito pelo Haiti” (Bill Quigley, “Why the US Owes Haiti Billions:The Briefest History”, Countercurrents, 17/01/2010).

Embora tropas da ONU estejamno país já quatro anos, o presidente deposto Jean Bertrand Aristide continuaexilado e impossibilitado pelo governo norte-americano de regressar ao país.Muitas dos seus apoiadores, lideranças populares, foram torturados, mortos ousimplesmente “desaparecidos”.

Como é sabido, esclareceCarlos Lopes, após a sua primeira deposição, em 1991, e sua volta ao Haiti, em1994, Aristide cedeu em parte às pressões econômicas norte-americanas. Mas, namedida em que tornou-se patente o desastre, recusou-se a prosseguir no quepercebia como a devastação de seu país - e de seu povo.

O cineasta norte-americanoKevin Pina, em seu artigo “The people do not buy liberty and democracy at themarket” (“O povo não compra liberdade e democracia no mercado” - a frase é dopresidente Jean-Bertrand Aristide), cita que não há dúvida de “que o movimentopolítico Lavalas [o partido de Aristide] opunha-se ao modelo econômiconeoliberal que está se desenrolando atualmente no Haiti. A insistência do FundoMonetário Internacional, do Banco Mundial e do Banco Interamericano deDesenvolvimento em ajustes estruturais que incluíam a eliminação das tarifas deimportação e exportação, a liquidação de empreendimentos e empresas estatais,um salário mínimo baixo e uma confiança obsessiva no setor privado como o motordo desenvolvimento econômico foi chamado ‘o plano da morte’.”

Pina ressalta ainda que “oprincipal obstáculo ao plano das instituições financeiras internacionais para oHaiti era a própria democracia, na forma do movimento Lavalas, que representavaos interesses da maioria dos pobres, e o presidente que eles elegeram duasvezes, Jean-Bertrand Aristide. O governo recusou a privatização deempresas-chave, como a Companhia Telefônica (Teleco) e a companhia deeletricidade (EDH), e enquanto as instituições financeiras internacionaistambém insistiam para que os programas sociais fossem cortados, o partido FanmiLavalas usava os lucros desses empreendimentos estatais para investir em umprograma de alfabetização universal e fornecer milhões de refeições subsidiadasaos pobres. Pela primeira vez na história, o Haiti teve uma rede de seguridadeque protegia contra a fome e a subnutrição generalizadas. Passando por cima dasobjeções das instituições financeiras internacionais e da elite econômicapredatória do Haiti, a força de trabalho com pagamento mais baixo do hemisférioteve o salário mínimo duplicado duas vezes, no primeiro e no segundo mandato deAristide. Não por coincidência, ambos os mandatos foram interrompidos por umgolpe”.

A aprovação, debaixo dapressão das multinacionais, do salário-mínimo de US$ 3,75 por dia, na avaliaçãode Pina, foi “o ato final de retorno oficial do Haiti ao neoliberalismo”. Arigor, assegura Carlos Lopes, esse salário passou a ser o máximo, e não omínimo, para os trabalhadores haitianos. O motivo é que o salário por peça foideixado à solta – logo, ninguém consegue ganhar nem mesmo o salário mínimo,pois as empresas o burlam através desse pagamento por peça. No primeiro mandatode Aristide, no mesmo decreto em que aumentou o salário mínimo em 140%, opresidente determinou que o salário por peça teria que corresponder, pelomenos, ao salário mínimo. Ou seja, tinha feito com que o mínimo fosse realmenteo mínimo.

Como alertou o juristanorte-americano William P. Quigley, defensor das vítimas do Katrina contra ogoverno Bush, “as corporações dos EUA têm, por anos, com a elite haitiana,dirigido estabelecimentos de escravização com dezenas de milhares de haitianosganhando menos do que US$ 2 por dia”.

A situação grotesca doslocais de trabalho é descrita por Eric Verhoogen, professor de economia daColumbia University, de Nova Iorque: “A fábrica é quente, vagamente iluminada,superlotada de gente. O ar é pesado pela poeira e pela lanugem que solta dostecidos. Não há nenhuma ventilação de que se possa falar. Pilhas de sobras depijamas, vestidos, saias, entopem cada corredor e cada canto. Os trabalhadorestêm caras tristes, cansadas. Eles curvam-se por cima de máquinas de costuraantiquadas, algumas com mais de 20 anos, costurando vestidos ‘Kelly Reed’ paraserem vendidos na Kmart, e outros produtos para lojas dos Estados Unidos.Vários trabalhadores informaram que tinham trabalhado sete domingos seguidos –em outras palavras, mais de 50 dias diretos, sem um dia de folga, mais de 70horas por semana - durante a estação mais quente do ano. Perguntado se estehorário criou problemas para os empregados ou a fábrica no conjunto, o gerente,Raymond DuPoux, disse que ‘eu é que tenho problemas, porque não posso ir à praia.Portanto, tenho problemas com minha esposa’ ”. (“The U.S./Haiti Connection - Rich Companies, PoorWorkers”).

Eric Verhoogen citaalgumas destas empresas:

- Seamfast Manufacturing -produz vestidos para as redes norte-americanas Kmart e J.C. Penney.

- Chancerelles S.A. -subsidiária da Fine Form, de Nova Iorque, produz sutiãs e cuecas para a ElsieUndergarments, da Flórida.

- National SewingContractors - produz pijamas para a Disney e roupas de meninas para a PopsiclePlaywear, de Nova Iorque.

- Excel Apparel Exports -produz roupas íntimas femininas para a Hanes, divisão da Sara Lee Corp.,vendidas pelo Wal-Mart e pela rede Dillard Department Stores, com sede emLittle Rock, Arkansas. Observação de Verhoogen: “Antes do presidente Aristideaumentar o salário mínimo, a cota diária de um trabalhador desta empresa era360 peças por dia. Agora [depois da deposição do presidente], a cota passoupara 840 peças por dia. Os trabalhadores não têm o direito de reclamar do ritmode trabalho; eles não têm nem mesmo o direito de falar um com o outro”.

- Alpha Sewing - produz luvas para a Ansell Edmont ofCoshocton, Ohio, filial da Ansell International of Lilburn, Geórgia.

Kevin Pina retrata a durae crua realidade após o golpe de 2004: “Em todas as partes o movimento Lavalase os pobres continuaram a manifestar-se contra o golpe, exigindo justiça e quefosse permitido a Aristide voltar ao Haiti. Seus líderes desapareceram, comoLovinsky Pierre-Antoine, no dia 12 de agosto de 2007, ou apodrecem na prisão,como Ronald Dauphin, ou sucumbiram às torturas, como o padre Gerard Jean-Justeno dia 27 de Maio de 2009”. Um dos documentários de Pina, relata Carlos Lopes,é sobre o funeral do padre Gerard Jean-Juste, onde milhares de pessoascompareceram e enfrentaram uma chuva de balas.

Como sustenta a CUT, parao pleno restabelecimento da democracia e da soberania, “o que o Haiti precisa éde médicos, enfermeiros, engenheiros e não de tropas de ocupação, seja dos EUA,seja da ONU”.