Krupp: duas ou três lições sobre...
O tropeço da gigante alemã no país condensa algumas coisas que os crédulos dos mercados racionais e autorreguláveis precisam aprender sobre o capitalismo
Publicado: 23 Janeiro, 2013 - 14h23
Escrito por: Saul Leblon, Carta Maior
Celso Furtado dizia que o carrasco das nações no mundo globalizado era a perda dos instrumentos endógenos de decisão.
Sem eles tornar-se-ia virtualmente impossível subordinar os interesses do dinheiro aos da sociedade.
A reinvenção dessa prerrogativa seria quase uma pré-condição para regenerar a agenda do desenvolvimento no século 21.
O fato de o Ministério do Planejamento no Brasil ter se reduzido a uma sigla ornamental, ilustra o quanto a sociedade ainda se ressente desse difícil processo de reconstrução.
O fiasco do projeto siderúrgico da Krupp (Tyssenkrupp) no país é mais uma evidência da visão arguta de Furtado, cuja pertinência histórica a ortodoxia nativa desdenha e inveja.
Fundada em Essen, há 201 anos, a lendária siderúrgica alemã, anexada por Hitler ao esforço de guerra nazista, está se desfazendo de uma unidade no Rio de Janeiro.
A Companhia Siderúrgica do Atlântico começou a ser planejada pela Tyssenkrupp em 2005; entrou em operação em 2010 e custou US$ 15 bi.
A previsão de produzir cinco milhões de toneladas de placas de aço por ano revelou-se um fracasso.
Não um fracasso qualquer.
O tropeço da gigante alemã no país condensa algumas coisas que os crédulos dos mercados racionais e autorreguláveis precisam aprender sobre o capitalismo.
A CSA nasceu como uma perfeita obra da globalização do capital.
Nela, como se sabe, nações e povos figuram como mero substrato logístico ou entreposto de insumos baratos.
Arcam com as externalidades do projeto e participam de forma lateral dos lucros.
Mas são coagidos a engolir o grosso dos prejuízos quando ele ocorre.
É o caso.
Num país com 8,5 milhões de quilômetros quadrados, a CSA foi erguida sobre um solo pantanoso, ao lado de um mangue, na Baia de Sepetiba, zona oeste do Rio de Janeiro.
A escolha singular elevou em cerca de 60% o custo de implantação.
Exigiu um exército de bate-estacas para as fundações que mobilizariam quase um terço da oferta desses equipamentos na região.
Havia lógica, a do dinheiro, por trás da aparente excentricidade.
Ocupar um terreno próximo à fonte de matéria-prima, trazida do Espírito Santo pela Vale do Rio Doce (sócia com 23% do capital), era uma motivação.
A disponibilidade de um porto exclusivo para intenso movimento de embarques rumo aos EUA, outra.
Uma siderúrgica complementar à CSA foi erguida pela Krupp no Alabama. As placas brutas enviadas de Sepetiba seriam laminadas nessa unidade para abastecer o parque automobilístico norte-americano.
A indústria automotiva dos EUA entrou em coma com o colapso da ordem neoliberal em 2008.
A espiral recessiva desligou seus altos-fornos e criou um elefante branco no Alabama.
A mesma condição foi estendida à siderúrgica gêmea brasileira.
Os impactos sociais e ambientais do projeto, porém, permanecem ativos.
Reportagem de Carta Maior durante a Rio+ 20, no ano passado, revelou que, entre outras 'externalidades', a localização inadequada contaminou o mangue e o mar com resíduos de metais despejados pela usina.
A vida marinha, a pesca e o turismo local foram golpeados.
Em novembro último, a CSA foi multada em R$ 10,5 milhões de reais pela secretaria estadual de meio ambiente do Rio.
Motivo: ter proporcionado aos moradores locais e à vida aquática um evento tóxico conhecido pelo nome poético emprestado aos fogos de artifício: 'chuva de prata'.
Nem a população de Sepetiba, nem o Brasil, tampouco os metalúrgicos do Alabama tem motivos para estourar fogos diante do fiasco global da Tyssenkrupp.
O stop lost no monitor da empresa na Alemanha já decidiu como resolver o seu problema específico no Brasil.
A Krupp resolveu vender o elefante branco a um grupo local e pressiona o BNDES a financiar o negócio da hora: uma planta ociosa num mundo que convive com um excedente de 500 milhões de toneladas de aço. O equivalente a um ano de produção da siderurgia chinesa.
Colosso de planejamento dos mercados racionais
Quando o conservadorismo ataca o governo por 'eleger vencedores', grupos financiados com empréstimos favorecidos pela TJLP, o juro real negativo do BNDES, certamente não se refere a esses casos ilustrativos.
Neles, os vencedores são os capitais globalizados cantados em verso e prosa pelos críticos do 'intervencionismo da Dilma' .
O grande perdedor, menos lembrado, é justamente a nação, desprovida - ainda- de planejamento público, bem como de salvaguardas estatais demonizadas pelos sacerdotes dos livres mercados.
A Krupp seguir a mais essa aventura do capital, como já aconteceu em outras oportunidades.
A pioneira da siderurgia alemã não sobreviveria por dois séculos se não encarnasse a própria essência mutante do capitalismo.
Escrúpulo não é um ingrediente da receita.
A mesma empresa que inventou o aro inteiriço das rodas de trens em meados do século XIX, distinguiu-se na fundição de canhões, que abasteceriam os exércitos alemães derrotados na Primeira Guerra.
Sob o nazismo, o complexo Krupp não desperdiçaria oportunidades e sinergias.
Anexado ao esforço de guerra de Hitler, exibiria notável poder de adaptação.
A contabilidade da empresa registra então um momento de virtuosa produtividade, vitaminada pela mais valia absoluta de dezenas de milhares de trabalhadores gratuitos.
Escravos, recrutados diretamente dos campos de concentração nazistas.