IDE e desnacionalização:
Artigo As transações negativas e os 5% de crescimento em 2010
Publicado: 10 Fevereiro, 2010 - 11h10
Escrito por: Carlos Lopes, Hora do Povo
Em artigo publicadooriginalmente no jornal Hora do Povo, Carlos Lopes alerta que o “problema dodéficit nas ‘transações correntes’ é o problema das remessas para o exterior,catapultadas pela entrada desenfreada de IDE (Investimento Direto Estrangeiro),pela desnacionalização por atacado de empresas”. Assim, sublinha, “sempre asremessas crescerão mais que o IDE”
As transações negativas e os 5% de crescimento em 2010
Pode ser que o paíscresça os 5% vaticinados pelo ministro Mantega para este ano. E pode ser quenão cresça. No entanto, o que isso significa? Certamente, nem o próprioministro acha que os nossos problemas econômicos estão resolvidos porque,presumivelmente, iremos crescer 5% este ano. Além disso ser uma previsão a ser realizada, aquestão, como disse o presidente Lula algumas vezes, não é apenas crescer emtal ou qual ano, mas manter o crescimento de forma a mudar o país, em especialsanar as graves injustiças sociais que ele ainda apresenta. Crescimento tipo“voo de galinha”, até Fernando Henrique conseguiu algum.
Em agosto de 2008,Mantega declarou, com bastante razão, que o grande problema era que o país“está no limite da valorização cambial” e que as contas externas “vão para ovinagre” (sic), se a hiper-valorização do real continuasse. Literalmente: “sefor mais adiante, estamos perdidos” (vera sua intervenção no seminário Carta Capital/FGV).
Até então, dejaneiro de 2003 a agosto de 2008, devido à atração de dólares pelos juros altosestabelecidos pelo BC, o real já havia acumulado uma “valorização” de 124,2% emrelação à moeda norte-americana. O que significava uma trava violenta àsexportações (e um incentivo igualmente violento às importações), reduzindo osaldo comercial - que caiu US$ 6,4 bilhões de 2006 para 2007 e continuavacaindo em 2008, mesmo antes da crise externa. O ministro, portanto, estavainteiramente certo ao temer que as contas externas fossem “para o vinagre”.
De lá para cá, houveuma implosão econômica nos EUA, que iniciaram uma guerra cambial contra osoutros países do mundo, emitindo trilhões de dólares sem lastro, provocando,exatamente, uma hiper-valorização, totalmente artificial, das outras moedas(exceto, evidentemente, daquelas que foram defendidas pelo governo de seuspaíses - o yuan à frente). Com os juros internos norte-americanos próximos dezero ou mesmo negativos, esses dólares invadiram os países em que os jurosestão mais altos, saqueando ativos - é assim que os EUA tentam superar a suacrise: às custas do mundo.
No entanto, emdezembro passado, Mantega declarou que as contas externas do país não são umproblema. Disse ele: “teremos um déficit em transações correntes”, mas “serácoberto por poupança externa”. E acrescentou: “não há risco”. Alguns dias depois,o déficit em “transações correntes” atingiu US$ 52,526 bilhões (em 2008, US$28,192 bilhões + US$ 24,334 bilhões em 2009).
Apesar de suaprópria estimativa de déficit nas “transações correntes” para 2010 estar emtorno de US$ 40 bilhões (o BC, através do “Boletim Focus”, diz que a “média dasexpectativas do mercado” é US$ 47 bilhões), Mantega não acha isso um problema,pois também prevê, não é muito claro com que fundamento, uma entrada de US$ 45bilhões em “investimento direto estrangeiro” (IDE).
O economista MárcioHolland, da FGV, disse algo interessante a esse respeito: “O déficit éfinanciável, esse que é o problema. Qual investidor, independentemente de suanatureza, não quer um mercado como o nosso? Teremos mais investimentosestrangeiros diretos com certeza. Mas esse tipo de investimento tem impactonegativo na conta corrente, uma vez que ele implica insumos importados eaumento nas remessas de lucros e dividendos no futuro” (Valor Econômico, 19/01/2010 – grifo nosso).
Mas, continuemos - oque são as “transações correntes”?
São de três tipos:
a) o comércio comoutros países (balança comercial: exportações menos importações);
b) as remessas de“rendas” e “serviços” para fora do país, remessas sobretudo de lucros,declaradas ou disfarçadas, e algumas outras, ou vice-versa (apesar dos esforçosdaqueles que querem criar “multinacionais brasileiras” às custas do BNDES, nãohouve ano em que as remessas para fora não superassem amplamente as remessas defora para dentro);
c) as“transferências unilaterais correntes” (em geral, dinheiro enviado porbrasileiros residentes no exterior para dentro do país e vice-versa) - esteitem, devido à sua pequena dimensão, não tem influência sobre o resultado das“transações correntes”, muito menos sobre o resultado do balanço de pagamentos.Por isso, aqui, não o levaremos em conta.
Portanto, um déficitnas “transações correntes” significa que o saldo comercial - isto é, riquezareal, produto real do trabalho do país - não está cobrindo as remessas para oexterior.
Então, por que,antes, quando as “transações correntes” não estavam deficitárias (em 2007 houveum saldo positivo de US$ 1,551 bilhão), estaríamos “perdidos” se elaspiorassem, e, agora, que elas já apresentaram um déficit de US$ 28,192 bilhõesem 2008 e US$ 24,334 bilhões em 2009, com o próprio Ministério da Fazendaprevendo que ele aumentará substancialmente em 2010, as coisas estão tranquilas?
Antes de qualquercoisa: é evidente que não vão ser os tucanos que irão resolver o problema dascontas externas, como, de resto, nenhum problema do país. Pelo contrário. Bastaver o que Fernando Henrique fez, quanto às contas externas, desde o primeiropasso que deu para dentro do Palácio do Planalto. Somente a ingenuidade do sr.Bresser pode produzir a pérola de que Serra adotaria a sua política pararesolver o problema – provavelmente da mesma forma que resolveu os problemas deSão Paulo, para não falar daqueles da Saúde...
Portanto, são asforças nacionais, aquelas que querem mudar o país, que terão de resolver aquestão. No entanto, em certos momentos, é uma tentação passar por cima dasquestões reais e concentrar-se, como aquele personagem da literatura para quemvivíamos sempre no melhor dos mundos possíveis, num horizonte que nãoultrapasse a ponta dos nossos narizes. Isso acontece.
Sucintamente: oproblema do déficit nas “transações correntes” é o problema das remessas delucro para o exterior. A redução do saldo comercial - que, apesar de cair, foipositivo e alto tanto em 2008 quanto em 2009 - somente seria um problema se nosdispuséssemos a empregar eternamente uma parte da riqueza nacional, advinda docomércio exterior, para cobrir o rombo deixado pelas remessas de lucros. Ouseja, apenas se nos dispuséssemos a ser duplamente saqueados por todos ostempos.
A questão é: quantomais “poupança externa” entrar no país, isto é, quanto mais entrar capitalestrangeiro, mais remessas de lucros haverá. Portanto, não é razoável ficartranquilo com a expectativa de cobrir o déficit nas “transações correntes” comcapital estrangeiro, porque o capital estrangeiro não irá pagar a si mesmo comseu próprio dinheiro.
Evidentemente, oministro Mantega sabe disso. Tanto assim que declarou: “vai haver uma retomadado comércio internacional lá para 2012, com a recuperação da economia mundial.Aí, teremos condições de fazer um saldo comercial melhor”.
Ou seja,voltaríamos, daqui a dois anos, depois de vender mais um lote de empresas – umlote de US$ 45 bilhões (!), segundo suas previsões - a cobrir as remessas delucro com o saldo comercial. Resta saber quando essa drenagem da riqueza nacional (isto é, do trabalho do país)terminaria.
Se depender, porexemplo, dos tucanos, nunca. Mas, vejamos a seguinte tabela:
SALDO DASTRANSAÇÕES CORRENTES (em US$ bilhões. Fonte: BC)
Gov. FH -186,164
2003 4,177
2004 11,679
2005 13,985
2006 13,643
2007 1,551
2008 -28,192
2009 -24,334
Esses númerosmostram que Fernando Henrique afundou o país em um déficit nas “transaçõescorrentes” de US$ 186 bilhões e 164 milhões. O que quer dizer que, diante dadebacle a que levou o comércio exterior, estava tapando esse imenso buraco comcapital estrangeiro. O que somente servia para aumentar ainda mais o déficit,com a queima de empresas, públicas e privadas, que foram tomadas pelo capitalexterno - pela simples razão de que estas empresas também se tornaramremetedoras de lucros para o exterior.
A tabela mostra,também, que o governo Lula, desde seu primeiro ano, procurou reparar essaextrema vulnerabilidade externa. No entanto, em 2008 e 2009, o país voltou aapresentar déficit - exatamente devido à entrada desenfreada de “investimentodireto estrangeiro” (IDE).
Agora, vejamos oprimeiro componente das “transações correntes”, a balança comercial, isto é, ovalor das exportações menos o valor das importações:
SALDO DA BALANÇACOMERCIAL (em US$ bilhões. Fonte: BC)
Gov. FH -8,517
2003 24,794
2004 33,641
2005 44,703
2006 46,457
2007 40,032
2008 24,836
2009 25,347
Em suma, o comércioexterior do país foi quebrado durante o governo Fernando Henrique - aliás, atémais do que esta tabela demonstra, pois o resultado do último ano, 2002,atípico no conjunto do governo, mascarou, em parte, o desastre. Nos primeirossete anos de governo (1995-2001), o saldo negativo estava em US$ 21,6 bilhões.Antes de 1995, o último déficit comercial do país havia sido em 1980, 15 anosantes, no acidentado governo Figueiredo. Porém, Figueiredo terminou seus seisanos de governo com um superávit comercial de quase US$ 16 bilhões (para serexato, US$ 15,888 bilhões).
A tabela tambémmostra que o governo Lula recuperou o comércio exterior, tirando-o de US$ 8,5bilhões negativos e elevando-o a um patamar positivo acima de US$ 40 bilhões; aqueda em 2007 não é muito significativa, mas é sinal de que os juros altos eseu corolário, a hiper-valorização do real, já começavam a mostrar efeito,assim como a diminuição de valor devido à “primarização” das exportações, ou seja,ao perfil cada vez mais concentrado em produtos primários (soja, minério deferro, etc.) do que vendemos a outros países.
Em 2008 e 2009, alémdessas travas, somaram-se a crise externa (com a seca no crédito para asexportações) e a consequente guerra cambial dos EUA contra os outros países,com mais pressão sobre o real, auxiliada pelo diferencial de juros, mantidomuito alto pelo BC em relação a esse e a outros países.
Vejamos agora osegundo componente das “transações correntes”, as remessas para o exterior,isto é, a soma dos itens “rendas” e “serviços” da balança de pagamentos. Aqui,como o total dos oito anos do governo Fernando Henrique não é esclarecedor - sóé capaz de mostrar que saiu muito dinheiro, quase US$ 200 bilhões (US$ 194,235bilhões) - recorreremos, para comparação, à média anual do governo FH eacrescentaremos a média anual dos quase 50 anos que vão de 1947 a 1994:
REMESSAS PARA OEXTERIOR (em US$ bilhões. Fonte: BC)
1947-1994 (médiaanual) -5,357
Gov. FH (médiaanual) -24,279
2003 -23,483
2004 -25,198
2005 -34,276
2006 -37,120
2007 -42,510
2008 -57,252
2009 -52,945
Até o governoFernando Henrique, o período em que mais se remeteram recursos para o exteriorfoi o governo Figueiredo, com um total de US$ 74 bilhões e 582 milhões em seisanos - o que significa uma média anual de US$ 12,430 bilhões, isto é, metade damédia anual do governo Fernando Henrique.
Pois, durante ogoverno Fernando Henrique, além da média anual das remessas dobrarem em relaçãoao governo Figueiredo, ela mais do que quadruplicou, quase quintuplicou, emrelação aos 47 anos anteriores.
As consequências nascontas externas da política de Fernando Henrique já apareceram antes que terminasseo segundo mandato - e se tornaram mais evidentes ainda nos problemas que deixoupara o governo Lula enfrentar.
O aumento dasremessas para o exterior é uma consequência daquela estúpida entrada de“investimento direto estrangeiro” (IDE), tão incensada pelo notório GustavoFranco e pelo próprio Fernando Henrique - isto é, entrada de dinheiro paracomprar empresas nacionais, tanto pela privatização e entrega de empresasestatais ao capital estrangeiro, quanto pela compra em massa de empresasprivadas brasileiras. Veja-se a seguinte tabela:
INVESTIMENTODIRETO ESTRANGEIRO
(IDE - em US$bilhões. Fonte: BC)
1947-1994 40,034
Gov. FH 163,451
2003 10,144
2004 18,146
2005 15,066
2006 18,822
2007 34,585
2008 45,058
2009 25,949
Sucintamente:durante o governo Fernando Henrique entraram no país, como Investimento DiretoEstrangeiro (IDE), quatro vezes o que entrou nas quase cinco décadas que vão de1947 a 1994. É significativo que enquanto o IDE era multiplicado por 4 emrelação aos 47 anos anteriores, as remessas eram multiplicadas por 4,5.
Aqui, como diziam osantigos, está o busílis. Vejamos o seguinte:
Ano 1995-2002 2003-2009 Variação
Entrada deIDE 163,451 167,770 +2,64%
Saída porremessas 194,235 272,783 +40,43%
Em sete anos degoverno Lula, o total de IDE foi mais ou menos o mesmo que nos oito anos dogoverno Fernando Henrique: US$ 167,770 bilhões, um aumento de 2,64% em relaçãoaos US$ 163,451 bilhões que entraram no governo Fernando Henrique.
No entanto, asremessas para o exterior passaram de US$ 194 bilhões e 235 milhões (1995-2002)para US$ 272 bilhões e 783 milhões - um aumento de 40,43%.
Em suma, somaram-seas remessas oriundas do IDE que entrou no governo Fernando Henrique com aquelasdo IDE que entrou no atual governo e com aquelas do IDE que entrou e ficou -desde que Cabral aportou na Bahia.
Esta é umacaracterística intrínseca do IDE, isto é, da desnacionalização das empresasdentro do país, quando nada limita nem regula suas remessas para o exterior: é como uma dívida perpétua e crescente –ou, melhor, é como uma dívida que você não deve, ou um bem que você já nãopossui, mas tem de pagar até o dia do juízo final. Nesse sentido, é pior para opaís do que uma dívida de natureza bancária ou do que o capital puramenteespeculativo. As consequências da entrada de IDE são bem mais permanentes.
O que a tabelamostra é, simplesmente, que as remessas sempre vão crescer mais do que aentrada de IDE, pela simples razão de que este é cumulativo, isto é, asempresas que foram compradas com o antigo IDE não param de remeter lucrosquando as empresas que foram compradas com o novo IDE passam a também remeterlucros.
No entanto, o saldocomercial é estritamente finito e dependente da especulação monopolista. E asolução para este problema não pode ser a de recorrer ao que causou o problemacomo se fosse a solução.
Não sabemos se opaís vai crescer 5%. Mas não será imitando o malfadado Gustavo Franco queteremos o crescimento que queremos.
Por último, umaobservação: o ministro baseia suas previsões de crescimento sobretudo noconsumo (“O mercado consumidor no país está crescendo a 5% ou 5,5%, o que émuito forte”). Quanto à taxa de investimento - isto é, a ampliação dacapacidade produtiva do país - sua previsão para 2010 é, meramente, que elachegue a 18% do PIB.
Registremos que ogoverno Lula fez um esforço notável, desde o início, para elevar a taxa deinvestimento da economia, que Fernando Henrique havia soçobrado - dos 20,75% doúltimo ano do governo Itamar (1994) ela havia baixado para 15,7% em 1999,alcançando, depois, apenas 16,4% em 2002 (os dados sobre a taxa de investimentosão do IBGE: até 2005, “Sistema de Contas Nacionais”; para 2006-2009, “ContasNacionais Trimestrais, Indicadores de Volume e Valores Correntes”, setembro,2009).
A taxa deinvestimento começou a subir, ainda que freada pelos juros do sr. Meirelles, jáno segundo semestre de 2003 - apesar de, no conjunto desse ano, o estragoeconômico anterior tê-la forçado, ao fim e ao cabo, para 15,3%.
Mas, no terceirotrimestre de 2008, a taxa de investimento já estava em 20,1% do PIB, e, muitoimportante, sempre crescendo mais do que o consumo - portanto, sem apossibilidade de inflação por excesso de procura e escassez de oferta que o BCusou para aumentar os juros.
Esse aumento na taxade investimento foi um triunfo do governo Lula. Infelizmente, nos mesesseguintes, a política do Banco Central e a do BNDES desperdiçaram esse triunfo,deixando que a crise entrasse no país.
Os 18% previstos porMantega para 2010 são inferiores à taxa de investimento já alcançada noterceiro trimestre de 2008 - e, apesar dos graves problemas no quarto trimestredesse ano, àquela do conjunto de 2008 (19%). A previsão do ministro, aliás, éapenas ligeiramente superior aos 17,7% do terceiro trimestre de 2009. É verdadeque, para 2014, ele prevê 23%, o que seria bastante razoável, se a previsão nãofosse para daqui a quase cinco anos - embora, ainda seria inferior à taxa deinvestimento de 1989 (26,86%), último ano do governo Sarney.