Caos e barbárie
Honduras pós-golpe: mais pobreza, repressão policial e violência
Publicado: 10 Novembro, 2009 - 13h35
Escrito por: El País
Antes do golpe, ÁngelDavid já morava aqui, nesta colônia, onde o único espaço verde e horizontal é ocemitério, por isso as crianças aproveitam um buraco na cerca para jogarfutebol ou brincar de esconder entre os túmulos de seus avós. O panorama deÁngel David não era muito animador.
Dividia os 8 metrosquadrados de um barraco de madeira com seu pai, jardineiro desempregado, suamãe, recém-grávida de seu quinto filho, e seus irmãos, o maior de 16 anos e omenor de dois. Não tinham banheiro, porque o último temporal o levou morroabaixo, mas sim eletricidade e telefone, boa educação e roupa milagrosamentelimpa.
Mas veio o golpe e a vidade Ángel David, que já não era boa, começou a piorar. Seu país, o segundo maispobre da América Latina, começou a receber sanções da comunidade internacionale seus 70% de pobres (40% sobrevivem com menos de US$ 1 por dia) foram ficandoainda mais desamparados.
O pai de Ángel David tinhacada vez menos trabalho. Sua mãe, menos dinheiro para fazer malabarismos. Ele,menos horas de aula. Como se fosse pouco, os dias em que o governo de RobertoMicheletti decretou o toque de recolher todos tinham de sair correndo por medoda polícia. Todos os dias chegaram em casa a tempo, menos em 21 de setembro.
Naquele dia havia-seespalhado por Honduras o rumor de que o presidente Manuel Zelaya tinhaconseguido voltar ao país em segredo. Para comemorar, seus partidáriosconvocaram concentrações em diversas áreas de Tegucigalpa, e o pai de ÁngelDavid decidiu participar na colônia 21 de Fevereiro, vizinha a sua.
Ao voltar para casa, soadoo toque de recolher, encurtaram caminho por um beco. Assustaram-se com o ruídode uma moto que se aproximava. Olharam para trás. Dois policiais vinham namoto. O de trás apontou para eles. Escutaram-se cinco disparos. Ángel David, de13 anos, caiu redondo no chão com um tiro nas costas.
Passou um mês e meio. Otaxista entra pela colônia 23 de Junho. O veículo mal pode avançar entre aspedras - a única rua asfaltada ficou para trás há tempo - e o medo que lhecausam os grupos de rapazes encostados nas esquinas. Há um momento em que nãose pode continuar de carro. A mãe, Nelly Rodríguez, convida para entrar em seuúnico quarto, arrumado e limpo, e apresenta orgulhosa seus filhos, educados ebem vestidos.
Seu relato do queaconteceu é exato e conciso, e nele aparece sem maquiagem a realidade deHonduras depois do golpe: "Meu marido e meus filhos vinham andandolentamente e os policiais puderam ver que havia duas crianças, mas mesmo assimlhes atiraram pelas costas. A bala acertou os intestinos, o cólon, o baço, ofígado e também parte do pulmão. Mostre a cicatriz ao senhor..."
Ángel David levanta-se,obediente. Tem a marca do tiro nas costas e a grande cicatriz da operação. Oque você sentiu nesse momento? "Angústia, senhor." E dor? "Também."E você perdeu os sentidos? "Sim." Como é a angústia? "Pensar quevai morrer." E sentiu medo? "Sim." E chorou? "Não."
Nelly continua contando:"O operaram de emergência. Esteve perto de morrer. A operação durou trêshoras e ele passou cinco dias em coma. Até que começou a abrir os olhos e afalar comigo. Esteve com oxigênio e com vários remédios que lhe deram noHospital Escola. Mas como não tinham todos os medicamentos de que elenecessitava tivemos de comprar. Não havia agulhas nem esparadrapo nem algodão.Nem soro.".
O que vem a seguirdemonstra até que ponto os protagonistas do golpe perseguiram os resistentes:"Um dia veio uma fiscal e me disse: 'Olhe, eu sou representante do direitodo menor e a senhora corre o risco de perder seus filhos, porque o culpado peloque aconteceu com seu filho não é o policial que disparou, mas a senhora'. Medisse que a culpada era eu".
Nelly começa a chorar, umpranto lento e silencioso que comove. As crianças ao seu redor prestam atenção."E me disse quando meu filho estava em coma, ali mesmo diante da camadele. Sim. Me disse que o policial não era culpado, mas eu..." Nelly foiameaçada de não ter seu filho de volta até que a organização Cofadeh, que cuidados familiares dos detidos e dos desaparecidos em Honduras, veio protegê-la.
A história de Ángel Davidé uma das centenas de casos dramáticos. Segundo a Unicef, "1.700 criançashondurenhas menores de 5 anos morreram desde 28 de junho de 2009, à razão de 13crianças por dia". A desnutrição e o péssimo atendimento de saúde contraepidemias como a da dengue hemorrágica são algumas das causas. Todos os diascerca de 60 crianças ingressam no hospital de Tegucigalpa atingidas por essadoença. Mas não há como atendê-las por falta de meios. Tudo isso em meio a umaonda de violência que deixa 14 mortos por dia e inúmeras detenções ilegais.
É verdade que a vida emHonduras não era boa antes do golpe, mas agora é pior. Não é verdade, ÁngelDavid?
Fonte: El País
Tradução: Luiz RobertoMendes Gonçalves