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Publicado: 17 Agosto, 2007 - 10h44

Escrito por: "Desqualificação dos setores populares pode conduzir a qualquer outro caminho, menos ao da democraci

 

Gerson Almeida*

 

Depois da tragédia com o vôo da TAM, que vitimou cerca de duas centenas de pessoas, o noticiário e os comentaristas de uma forma geral avançaram para um ataque direto, não mais às empresas e instituições ligadas ao setor aéreo (Gol, TAM, INFRAERO, ANAC, Aeronáutica, etc), mas diretamente ao presidente Lula e ao seu governo.

 

Mesmo quando ficou claro que a causa do acidente não foi a entrega da pista sem condições adequadas (hipótese imediatamente divulgada por toda a mídia como definitiva, mesmo sem qualquer evidência consistente), a escalada em direção ao centro do governo não parou, sendo que o episódio da “imagem clandestina”, que envolveu o professor Marco Aurélio Garcia e o advogado Bruno Gaspar, serviu como senha para que o assunto passasse a ser a insensibilidade de um governo que, além de incapaz de agir e resolver problemas importantes transforma tudo em disputa política...rasteira e obscena.

 

Como é sabido mais do que a imagem, o importante para a construção da opinião é a chamada metamensagem, aquilo que não é dito por palavras, mas está subjacente ao texto e à imagem. A maneira como esta metamenssagem é recepcionada por cada pessoa, depende da sua experiência e dos seus valores. As empresas de comunicação de massas valem-se amplamente deste expediente para a produção de opinião. A publicidade, por exemplo, vive da fabricação e incitamento do imaginário dos consumidores, sempre buscando transformar as mercadorias que vende à satisfação desse imaginário.

 

A mídia utiliza fartamente as imagens para dar solidez às suas idéias e interpretações, que quase sempre são anteriores e até mesmo independem delas. Não é por outra razão que havia, segundo foi noticiado posteriormente, uma orientação da GLOBO para que seus cinegrafistas mantivessem campanas sobre algumas salas do Palácio do Planalto.

 

Ou seja, a captura daquela imagem não foi fortuita, ao acaso, mas as evidências parecem mostrar que a decisão de buscá-la foi caso pensado e fruto de decisão superior. Não há notícia de que isso tenha sido feito em governos anteriores, ou em algum outro governo estadual, por exemplo.

 

A partir daí, a busca por informações mais consistentes sobre o contexto e os motivos da tragédia (o que seria o esperado depois dessa primeira hipótese ter perdido força), foi substituída por um discurso crescentemente intolerante. Nele, as ações e explicações originadas do governo são imediatamente desacreditadas, ou, no mínimo, colocadas sob suspeição.

 

O caso do laudo do IPT, comentado por Paulo Henrique Amorim (Conversa Afiada), é exemplar. Apesar do laudo, publicado no site do jornalista Fernando Rodrigues, afirmar que as condições do asfalto da pista de Congonhas são de qualidade, a Folha de S. Paulo (empresa na qual ele trabalha) “escondeu a notícia”.

 

No entanto, no site “Ultimo Segundo”, do iG, o editorialista do Estadão, Luis Weiss, publicou outro relatório, no qual afirmava que a pista teria sido liberada. Até aí, mesmo que não seja nada usual, poderíamos estar diante de relatórios conflitantes. O interessante é que, ao responder uma pergunta do site “Conversa Afiada”, o diretor do IPT, Vahan Agopyan, respondeu: “o IPT não analisou a pista de Congonhas (...) o IPT não fez nenhuma outra análise sobre a liberação da pista de Congonhas, depois das obras”.

 

No dia 23/07, foi amplamente noticiado e mostrado, o desbarrancamento de talude próximo à cabeceira da pista de Congonhas, tendo sido apresentado como mais um caso de incapacidade e descaso gerencial do governo. Não foi igualmente noticiada que a drenagem do talude não havia sido recuperada por determinação da PF, em função das investigações que estão em curso e são desejadas por todos.

 

Nos últimos dias, muitos editoriais e colunistas passaram a assumir um tom jocoso, conforme sistematizado pelo jornalista Marco Aurélio Weissheimer (Carta Maior), que registra a utilização dos seguintes termos: “colapso do lulismo”, “corriola governamental” e “incapacidade de governar o país”.

 

Além disto, ele também chama a atenção para declarações de Ministro do Superior Tribunal Militar, que afirmou que “pessoas de bem vão se pronunciar como já fizeram em um passado não muito distante”. O editorial do jornal O Estado de S. Paulo, no dia 24/07, falou em “governo desacreditado” e “colapso do lulismo em matéria de permitir, em última análise, que o país funcione”. O Estadão referiu-se ao Presidente da República como “o inexperiente Lula, o qual na irrefutável constatação de Orestes Quércia, em 1994, nunca dirigiu nem um carrinho de pipoca, antes de ambicionar o Planalto”.

 

Na mesma direção, o colunista Clóvis Rossi, perguntou (24/07), na Folha de S. Paulo: “se o país é incapaz de segurar um avião na pista, vai segurar o quê?”. Parece que a mídia também não consegue segurar o tom de crise generalizada e paralisia nacional – parece que a tragédia e seu contexto deixaram de ser centrais -, como mostrou, ainda, o jornalista do “Carta Maior” ao citar o jornal O Globo que, em editorial, disse que “a crise é mais profunda do que se quer fazer crer”. Também no Globo, Dora Kramer afirmou que “à corriola governamental tudo é permitido: agredir o público com grosseria, com leviandade, com futilidades, com fugas patéticas ao cumprimento dos deveres, com indiferença, vale qualquer coisa se a anarquia tem origem nas hostes governistas”. “Corriola”, em seu uso informal, lembrou Weissheimer, significa “grupo de pessoas que agem desonestamente ou de forma inescrupulosa; quadrilha”.

 

No dia seguinte, 25/07, José Nêumanne (Estadão), não contente em classificar os assessores do governo como neostalinistas, adicionou os epítetos de obscenos, insensíveis e incompetentes. Com isso, ele concluiu o processo que além de construir a culpa da tragédia como obra meticulosa do governo e do próprio presidente Lula, fartamente identificado como responsável pelas mortes, quer ir ainda mais longe, e vincular o governo e, também, o PT, com a herança do stalinismo (numa ignorância, ou má fé em relação a uma tradição política que foi construída contra a esquerda tradicional e foi duramente combatida por ela).

 

Na construção do “caldo de cultura” apropriado para a elevação do tom dos ataques ao governo, cabe todo o tipo de tempero, mesmo quando é colocado pela própria empresa diretamente envolvida na tragédia, a TAM. A imprensa noticia que dois pilotos, “autorizados pela TAM", declaram que o problema é pista, não avião, além de outros pilotos que “se recusam a pousar" em Congonhas. No mesmo dia, segundo aGlobo, ao comentar esse episódio, "a TAM disse apenas que é questão de soberania dos pilotos" (Nelson Sá).

 

Ninguém se importou em tratar dessa contradição entre a alegada autonomia dos pilotos e a informação de que houve autorização da TAM. Tampouco, a mídia tem avaliado as formas pelas quais a empresa busca se proteger e elidir as suas responsabilidades na segurança dos passageiros e na manutenção das aeronaves. A TAM, estranhamente, tem sido tratada como vítima e não sujeito da crise.

 

Como o fogo do “caldo de cultura” da crise já estava alto, estavam criadas as condições para ir ainda mais longe. Segundo notícia veiculada no Adnews (23/07) “a mídia fará um minuto de silêncio em protesto à tragédia aérea. Diversas emissoras de rádio e TV firmaram apoio ao ato cívico ”Pelo Brasil, Pare“. A idéia é realizar um minuto de silêncio em homenagem às mortes, em decorrência do acidente com o avião da TAM. A transmissão da mensagem de protesto acontecerá ao vivo e a campanha solidária é coordenada por João Doria Jr., amigo próximo do ex-presidenciável tucano Geraldo Alckmin, com o apoio de Luiz D'Urso presidente da OAB-SP e outros 40 empresários.

 

Segundo Bob Fernandes, a articulação ganhou o nome oficial de Movimento Cívico pelos Direitos dos Brasileiros, mas é informalmente conhecida como "Movimento Cansei". As consignas são "Cansei da corrupção" e "Cansei do apagão aéreo". Mesmo que não haja menção direta ao presidente Lula, ele seria o alvo, segundo Bob Fernandes. A formalização do apoio dos empresários engajados na proposta será feita em reunião no escritório Doria Associados.

 

De acordo com informação do jornal Folha de S.Paulo, entre o grupo estão os publicitários Nizan Guanaes e Sérgio Gordilho, da agência África. Peças publicitárias serão divulgadas em veículos como forma de apoio solidário ao movimento. O material de convocação do protesto deve entrar no ar nos próximos dias.

 

Para demonstrar que a tragédia com o avião da TAM está sendo utilizada para coesionar o discurso e a ação da oposição ao governo, a coluna de Cláudio Humberto noticiou uma mobilização para “pedir o impeachment de Lula, dia 4, em passeata na Av. Paulista. Os organizadores vão colocar nariz de palhaço, roupas pretas, e levar fotos dos mortos nos acidentes, além de faixas e cartazes de protesto”. E o dia, segundo o jornalista, do “Fora, Lula”.

 

Por sua vez, o blog de César Maia, publica excertos de um denominado “Manifesto de Oficiais da Aeronáutica”, no qual é duramente criticada a criação do Ministério da Defesa e os ministros que por lá passaram são caracterizados como “as incompetências conhecidas e reconhecidas”. O suposto manifesto segue com várias afirmações na linha de que a INFRAERO e a ANAC caíram “na mão de políticos do PT”.

 

E um grupo pequeno numericamente, mas com grande agilidade e capacidade de somar adesão de setores classificados pelo ex-governador de São Paulo, Cláudio Lembo, de “elite branca”, que tem produzido artigos e editoriais como o do Jornal do Brasil de 31/07, que sentenciou que “a crise nos céus permitiu contemplar a desorganização generalizada. O Brasil não tem gestor”, construindo um quadro no qual joga afirmações como a de que “a adoção de duas metas de inflação, elevou os juros futuros, agravando a dívida nacional, minou a credibilidade externa do país e levantou apreensões entre os agentes econômicos sobre quais outros malabarismos poderão ser inventados pelo governo na ânsia de consolidar as próprias contas por mágica”.

 

Afirmou tudo isto no dia em que a agência Reuters divulga que “a confiança da indústria brasileira atingiu em julho o maior nível da série histórica da Fundação Getúlio Vargas iniciada em 1995, refletindo uma melhora tanto da avaliação da situação atual como das expectativas”.

 

Não faltou, sequer, um artigo de Jarbas Passarinho, no qual ele afirmou que mesmo que a ética e a moral não sejam “princípios privativos da ”elite branca“, os menos favorecidos são reconhecidamente insensíveis a elas se o assistencialismo não lhes deixam passar fome”.

 

Ou seja, a tragédia da TAM, está sendo descaradamente utilizada, não para cobrar medidas concretas e objetivas de um governo que herdou uma infraestrutura sucateada em todos os setores e um país que não crescia há muito tempo (e que tem o dever de enfrentar todos esses desafios), mas para construir uma divisão entre os setores médios e altos da sociedade, contra os setores sociais populares. Nessa divisão, os primeiros são identificados como informados, autônomos intelectualmente e exigentes em relação à ética e à moral; enquanto os outros são tutelados, dependentes de favores governamentais e insensíveis à ética e à moral.

 

Parece que há uma ânsia exacerbada de setores conservadores e ainda rancorosos com a reeleição do presidente Lula em tentar se apoderar do luto dos parentes e amigos das vítimas e politizar a justa comoção motivada pela tragédia com o vôo da TAM.

 

Fizeram isso para arremessar contra o governo do presidente Lula, decretando que o seu mandato, iniciado há seis meses, “começa a se exaurir. E a levar o país de roldão. E hora de mudar. Antes de um apagão geral que ninguém quer e o país não suportará” (Editorial JB, 31/07).

 

Este tom, ao pretender homogeneizar os setores médios num discurso conservador e anti-Lula (o que é fortemente arbitrário e não encontra respaldo na realidade) e separá-los dos setores populares (que são desqualificados sistematicamente), parece ser uma tentativa, consciente, ou não, de aproximar a situação política do Brasil à da Venezuela.

 

Felizmente, esta escalada de “venezuelização” que setores minoritários e parece que saudosos dos anos de chumbo (que por um momento ganhou a grande mídia brasileira), parece que foi contida logo após o primeiro ensaio de mobilização de rua feita no último domingo, quando a passeata dos punhos de renda, apesar de sucessivas negativas, não conteve o seu afã e mostrou inteira a sua alma, ao pregar o Fora, Lula!

 

Segundo noticiado pela Mônica Bérgamo (FSP, 31/07), depois da TV Globo e TV Bandeirantes, a TV Record e a Rede TV também desistiram de veicular anúncios de protesto do "Cansei", apesar do grande espaço que lhe é conferido.

 

A alienação tradicional da elite ao Brasil real e o seu pouco apreço aos procedimentos democráticos está aliado ao atávico desprezo, tão evidente quanto negado, aos setores de extração popular, como bem mostra a afirmação de Jarbas Passarinho, que os identifica como insensíveis aos sentimentos de ética e moral. Raciocínio perigoso e estranho à qualquer compromisso democrático, dado que a desqualificação dos setores populares pode conduzir para qualquer outro caminho, menos ao do aprofundamento da democracia. Jarbas Passarinho sabe muito bem disto, dado que no seu currículo está a assinatura do AI-5, que aprofundou o banimento das liberdades democráticas no país.

 

A diferença substantiva que temos no Brasil de hoje, é que a organização social brasileira fez emergir sujeitos com um grau de autonomia e capacidade de produzir opinião de forma mais complexa e sofisticada do que é possível ser avaliada por aqueles cujo ponto de partida é associar riqueza com sabedoria e pobreza com estupidez. Ou, ainda, opinião publicada, com a opinião pública.

 

A verdade é que a maioria da população se enxerga no presidente metalúrgico, mesmo que possa ter muitas críticas e até mesmo frustrações com o seu governo. Nessa adesão, há razões de inteligência material, já que o país está melhor do que esteve; assim como razões de inteligência histórica, dado que existem 500 anos de motivos para desconfiar das boas intenções e da repentina sensibilidade social de quem produziu um país campeão em desigualdades e concentração de renda, sem manifestar qualquer cansaço disso nesses cinco séculos.

 

Devemos evitar uma visão conspiratória da história, mas os documentos recentemente colocados à disposição sobre a participação dos EEUU no golpe militar de 1964 (para não citar tantos outros casos, inclusive ao longo da trajetória do próprio presidente Lula e da construção do PT), estáo aí para nos alertar de que como as bruxas não existem, devemos redobrar os cuidados com elas. E isso se faz com mais democracia e mais luta contra a desigualdade social e não com o retrocesso institucional e a desqualificação dos setores populares e suas opções eleitorais, onde esse triste episódio de politização de uma tragédia comovendo é mais um caso.

 

*Sociólogo

31/07/07