Usinas eólicas e desenvolvimento em Serra do Mel
Publicado: 02 Setembro, 2025 - 00h00 | Última modificação: 02 Setembro, 2025 - 15h56
Artigo escrito com a coautira de Felipe Vasconcellos, Sócio de LBS Advogadas e Advogados e assessor jurídico da CUT Nacional
A insatisfação de diversos produtores rurais de Serra do Mel-RN levou ao questionamento do modelo de transição energética que estamos implementando no Brasil. A comunidade denunciou os efeitos negativos dos empreendimentos eólicos na região e em julho de 2024 se reuniu em assembleia na Câmara Municipal para aprovar medidas com o fim de reparar e mitigar os impactos, dentre as quais a propositura de uma ação coletiva.
A ação coletiva foi proposta pela Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do RN (Fetarn), Central Única dos Trabalhadores do RN (CUT-RN) e Serviço de Assistência Rural e Urbano (SAR-RN).
Desde a distribuição da ação, uma onda de notícias falsas tem se espalhado pela região, com o fim de instalar medo entre os produtores. Afirma-se, por exemplo, que se a ação for aceita, 28 das 36 usinas eólicas (utilizamos o termo usinas ao invés de parques) em Serra do Mel podem ser paralisadas, o que afetaria diretamente a renda dos produtores. Além disso, afirma-se que os empreendimentos não produzem impactos negativos, na medida em que o PIB local teria saltado dez vezes nos últimos anos.
Nenhuma entidade e nenhum produtor rural é contra as energias renováveis e a ação não tem a intenção nem a capacidade de inviabilizar projetos desse tipo. Pelo contrário, reconhecemos a necessidade e a urgência da transição energética e de projetos que possam reduzir as emissões de CO2 na atmosfera.
Todavia, essa transição precisa ser justa, o que significa dizer que o modelo de implantação desses projetos precisa proteger os direitos das comunidades, permitindo benefícios para todas as pessoas e não só para as empresas.
O que se questiona na ação, fundamentalmente, são os impactos socioambientais negativos causados pelos empreendimentos e a revisão de contratos com cláusulas abusivas, com o fim de garantir uma melhor remuneração aos produtores.
Aumento do PIB
No processo de desinformação instaurado após a manifestação do Ministério Público Estadual favorável à causa, em 12 de junho deste ano, afirmou-se que o Produto Interno Bruto (PIB) da região aumentou dez vezes desde a chegada das eólicas e que, por isso, o empreendimento só pode ter tido um impacto positivo.
O que poderia ser um sinal de desenvolvimento representa, na realidade, mais desigualdade. O PIB mede a circulação de mercadorias em uma determinada região. Quanto mais mercadorias se vendem, maior é o PIB.
Desde a chegada das eólicas, uma nova mercadoria foi inserida no mercado: o vento. É natural que a inserção de uma nova mercadoria aumente o fluxo de vendas e, por consequência, aumente o PIB da região. Entretanto, a verdadeira pergunta que deveria ser feita é: a renda dos produtores rurais aumentou dez vezes com a chegada dos empreendimentos eólicos?
A denúncia feita pelos produtores é de que, pelo contrário, sua renda vem diminuindo. A renda que a empresa havia prometido no início, de cerca de R$ 5 mil por produtor, nunca se concretizou.
Nos últimos anos a renda mensal proveniente das eólicas chegou a cair consideravelmente: em algumas localidades, mais de 50%. O que isso significa? Que o aumento do PIB aumentou a desigualdade, com maior concentração da renda nas mãos da Voltalia e nenhuma distribuição de renda.
Não há indícios de que o IDHM (Indice de Desenvolvimento Humano Municipal - educação, longevidade e renda) e o Indice de Gini, que mede a desigualdade social tenham sofrido alterações positivas nos últimos anos, no entanto os dados oficiais estão desatualizados. De acordo com dados do IBGE para o município, por exemplo, em 2023, nos anos finais do ensino fundamental, o IDEB (índice de desenvolvimento da educação básica) é de 3,5 ficando em 110º lugar entre os 167 municípios do estado e 17º na região.
Por fim, os produtores continuam a pagar uma conta de luz cara e aguentando os impactos negativos das usinas eólicas em sua região: como ruídos, impactos na saúde e na produção.
Estudo de impacto ambiental
Uma das questões discutidas na ação é a ausência de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) prévio à implantação dos empreendimentos – fato confessado pela própria empresa responsável pelas usinas.
O EIA/RIMA é fundamental para a prevenção dos riscos e para a implementação de medidas de compensação e mitigação dos danos, em diálogo com a comunidade. Isso não foi feito e esse é um dos fatores pelos quais os impactos negativos não foram prevenidos nem remediados até o momento.
O próprio empreendimento, em pesquisa de percepção de ruídos na Vila Guanabara (uma das agrovilas de Serra do Mel) aponta que 36% da população se sente incomodada com os ruídos produzidos pelos aerogeradores. Porém, nada foi feito para compensar ou mitigar esse dano.
Na distribuição dos aerogeradores pelas vilas não existe um padrão de distanciamento das residências, variando de 3,4 km até 215 metros e tão pouco houve qualquer tipo de mitigação/adaptação para as residências próximas dos aerogeradores.
Paralisação de aerogeradores
A previsão de paralisação de 28 usinas é equivocada e parte de uma desinformação retirada de um pedido constante da ação coletiva, que propõe um modelo ideal de distanciamento de 2.000 metros de distância dos aerogeradores para as residências. Afirma-se que, por ser impossível esse distanciamento, a ação expulsaria a empresa do município, prejudicando centenas de produtores.
Isso não é verdade, tanto é assim que em recente decisão o juiz da causa afirmou que não determinaria nenhuma realocação ou suspensão de aerogeradores nesse momento. Todavia, ainda que houvesse algum tipo de suspensão, isso não prejudicaria a remuneração mensal dos produtores, já que quem teria dado causa a uma possível suspensão não seriam os autores da ação, mas a própria empresa.
Contratos abusivos
Outro ponto discutido na ação são os contratos abusivos, que não são modelos para projetos de desenvolvimento com distribuição de renda. Em primeiro lugar, os contratos não são coletivos. O contrato é feito individualmente com cada produtor e prevê a cessão de 100% da posse da propriedade dos produtores, por períodos de até 50 anos. Quem não quiser se submeter ao contrato fica de fora e não recebe qualquer valor referente à produção e venda da energia. Mas, ainda assim, é impactado.
Há também a previsão de desconto de 7,5% de toda a receita a ser paga ao produtor para um atravessador chamado “advogado intermediador” de forma vitalícia e hereditária. Ou seja, se esse advogado falece, seus sucessores, independentemente da profissão, continuarão a receber esses valores. Não há paralelo no direito para cláusula tão abusiva e a OAB deveria investigar esse tipo de conduta, não só do advogado intermediador, mas também da empresa.
A cessão de 100% da posse da propriedade, por sua vez, também implica em restrição de direitos aos produtores rurais da agricultura familiar, como perda da qualidade de segurado especial e restrição a crédito. Ambas as restrições já foram confirmadas pelo INSS e pelo BNB, respectivamente.
Desenvolvimento e transição justa
O desenvolvimento que defendemos deve ser ambientalmente sustentável, economicamente viável e socialmente justo. Isso significa que os projetos de transição energética devem servir, principalmente, para o desenvolvimento nacional e local, o aumento de renda das famílias, a geração de emprego decente e a garantia de nossa soberania energética e alimentar.
É por isso que o modelo implementado pela Voltalia precisa ser questionado. Apesar de ter recebido mais de 500 milhões de reais em isenção de impostos, apenas para os empreendimentos de Serra do Mel, não há um retorno efetivo para a comunidade. A energia produzida, por exemplo, não fica na região, mas vai para abastecer o sul e sudeste, sem nenhum tipo de subsídio local: os produtores continuam pagando uma conta de luz cara.
Além disso, parte da energia produzida é negociada no mercado livre, ou seja, não é possível saber quem está comprando e a que preço, já que os contratos não têm transparência. Isso impacta diretamente a remuneração dos produtores, já que sua renda é um percentual de 1,55% do faturamento da empresa, dividido entre todos os que assinaram os contratos. Se não é possível saber para quem foi vendida a energia e a que preço, não é possível aferir a correção dos valores pagos.
Sequer é possível argumentar que o projeto gerou empregos decentes. Os empregados criados foram temporários, precarizados, principalmente na época da construção das usinas, não se revertendo em criação de emprego estável na região.
De acordo com dados do IBGE, organizados pelo Dieese em 2023, cerca de 61,7% dos empregos formais em Serra do Mel tem remuneração mensal entre 0,5 a 2,0 salários-mínimos, o que revela permanência de uma situação de baixos salários e ocupações com exigência elementar.
Por fim, o lucro vai pra França, pois se trata de uma multinacional francesa que não implementou qualquer compensação ou mitigação de danos na região.
A transição energética justa não ocorrerá com um giro de investimentos sem critérios para o setor energético, desconsiderando as obrigações do Estado e das empresas de possuírem um padrão elevado de devida diligência em direitos humanos e ambientais nessa área. Isso implica um outro modelo de implantação desses projetos, que respeite os direitos dos trabalhadores e das comunidades atingidas.
É preciso romper com a lógica extrativista que trata os territórios apenas como fonte de recursos a serem explorados, sem retorno real para as comunidades. Serra do Mel não pode ter “zonas de sacrifício”. A transição energética justa exige que toda a comunidade tenha voz, participação e benefícios concretos, e que seus direitos sejam respeitados desde o planejamento até a execução dos projetos.
Em Serra do Mel a empresa Voltalia adotou tática comum em grandes empreendimentos que é dividir a comunidade, concedendo a uma parte benefícios e condições que não são para todos.
Não se trata de ser contra a energia eólica, mas contra um modelo injusto, que concentra renda, impõe contratos abusivos, ignora estudos ambientais e expropria a riqueza local. O desenvolvimento nacional não pode se dar nas costas dos produtores rurais e de suas terras, mas deve aliar sustentabilidade ambiental, justiça social e soberania.