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Artigo

Uma defesa feminista da Redução da Jornada de Trabalho

Publicado: 11 Outubro, 2007 - 00h00 | Última modificação: 25 Setembro, 2014 - 13h16

Todos e todas nós, sindicalistas e feministas, sabemos que a inserção da mulher no mercado de trabalho tem um perfil absolutamente desigual em relação ao homem trabalhador. Da mesma forma, sabemos muito bem que o alongamento da jornada de trabalho prejudica principalmente a mulher trabalhadora. Como somos a parcela mais pobre da população brasileira, essa inserção desigual nos condena a reproduzir e intensificar a pobreza. A ação sindical em torno da redução da jornada de trabalho tem enorme potencial para alterar a condição da mulher trabalhadora, mas tal medida somente logrará sucesso rumo a esse objetivo se vier acompanhada de políticas públicas que possibilitem a valorização social do trabalho doméstico não remunerado.

A opção de política econômica que foi hegemônica durante toda a década de 1990 provocou impactos extremamente negativos sobre a situação do trabalho no Brasil. A escolha do neoliberalismo como modelo de gestão da economia brasileira sob a égide dos tucanos impôs a desregulamentação do mercado de trabalho, com sua flexibilização e precarização, como se fosse uma necessidade para adaptação à perversa lógica da ordem mundial. Conseqüências graves para a classe trabalhadora ficaram cada vez mais evidentes: desemprego e informalidade elevados, diminuição da média salarial, terceirização.

No ano de 2005, as mulheres constituíam 40,3 % da PEA (População Economicamente Ativa). Elas são as mais atingidas pelo desemprego e pelo crescimento do setor informal da economia. Sua inserção desigual no mercado de trabalho torna-se marca, perpetuando-se em sua estrada. Desta forma, com a desregulamentação, o que significa desproteção social, as mulheres são as principais vítimas. Por mais que aumente a sua participação na PEA, essa elevação ocorre em um contexto de precarização das condições de trabalho, cujo alvo prioritário são elas próprias – ao lado dos jovens.

De acordo com pesquisa realizada pela Secretaria de Política Sindical da CUT Nacional em parceria com a Sub-Seção do Dieese em cinco ramos de atividades, o número de mulheres que realizam jornada extraordinária (hora extra ou banco de horas) é inferior a realizada pelos homens. A mesma pesquisa, no entanto, apresenta um alto índice de trabalhadoras que dizem ter sofrido assedio moral, especialmente nos setores tradicionalmente femininos (calçados e comércio e serviços). A recusa da mulher em alargar sua jornada quase sempre lhe rende punições. O sentido do tempo de trabalho para a mulher adquire conotação diferenciada. Não é à toa que, de acordo com a mesma pesquisa, são as mulheres que dão mais importância à necessidade de limitar legalmente o uso de horas extras.

O sentido diferenciado sobre o tempo de trabalho está relacionado à desvalorização social do trabalho doméstico. A reivindicação da igualdade entre homens e mulheres tem menor sentido se não for incorporado o reconhecimento na esfera pública do trabalho realizado pelas mulheres na esfera privada. Segundo dados PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE, em 2005 91% das mulheres brasileiras exercem tarefas domésticas contra 51% dos homens que realizam esse mesmo tipo de atividade.

Nós continuamos a ser responsabilizadas pela esfera doméstica, mesmo assumindo cada vez mais participação na esfera pública por meio da inserção no mercado de trabalho. A menor participação dos homens nas tarefas domésticas foi observada na região Nordeste, onde 46% dos homens realizam tais tarefas. A valorização do machismo é fortalecida pela tradição segundo a qual trabalho doméstico é sinônimo de sexo feminino. Trata-se de uma tradição que vem “de berço”, pois 83% das meninas são orientadas para os afazeres do lar enquanto entre os meninos a proporção é de 47%. O cuidado das crianças e de grande parte dos idosos terminaram, ao longo da história se firmando como responsabilidade natural das mulheres.

Numa sociedade na qual o conhecimento é cada vez mais um pré-requisito para a disputa por emprego – quiçá por melhores empregos – a utilização do tempo livre para o trabalho doméstico não remunerado firma-se como mais um cruel mecanismo de desvantagem feminina. Ela tem a função de, para além da jornada legal de trabalho, cuidar do filho, da casa, do idoso. Ele, no mesmo período, pode ter acesso ao lazer, ao descanso, à informação e, em alguns casos, à formação profissional. A disputa pelo tempo livre, é necessário ressaltar, não é feita com o sexo masculino, mas com as regras do sistema capitalista que impõe essa desqualificação.

A crescente participação feminina no mercado de trabalho veio acompanhada – pelo contexto desse mercado e pela lógica diferenciada da exploração da força de trabalho das mulheres – de um aumento da jornada de trabalho não pago, caracterizado pelas tarefas domésticas. A carga semanal delas supera a dos homens em quase cinco horas.

Uma agenda feminista para a redução da jornada de trabalho

         Um desafio central é a ampliação do conceito de trabalho, incorporando o trabalho doméstico. Deve-se tratar o valor do trabalho em sua dimensão econômica e social. É por isso que a luta pela redução da jornada de trabalho assume uma dimensão diferenciada para as mulheres. Diz respeito ao uso do tempo livre de forma autônoma, governada por ela própria. Significa construir mecanismos que possibilitem romper com as imposições sobre as formas de utilização do tempo livre das mulheres.

         A História nos mostrou que a redução legal da jornada de trabalho não é suficiente, por si só, para a geração de novos postos de trabalho. Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, com a redução de 48 para 44 horas, os capitalistas conseguiram rasgar as leis através do uso abusivo de horas extras, cujo símbolo maior de tal abuso é o banco de horas. Essa constatação levou a CUT a elaborar um Projeto de Lei que limita o uso de horas extras e põe fim ao banco de horas. Sem isso, por mais que seja reduzida legalmente a jornada, o mecanismo da hora extra continuará a ser utilizado para aumentar a exploração do capital sobre o trabalhador e a trabalhadora.

         Esse exemplo ajuda-nos a compreender que a redução da jornada de trabalho somente terá impacto positivo sobre a vida das mulheres se vier acompanhada por um amplo programa de políticas públicas que transformem o trabalho doméstico em política de Estado.

         A reprodução da vida humana, sua forma de organização e as decisões sobre o que e como produzir estão relacionadas ao trabalho. Cresce cada vez mais o trabalho que é realizado por fora da economia formal. São as mulheres que realizam a maioria deste trabalho não formal: doméstico, informal, para o consumo próprio, projetos da economia solidária com parte da geração de renda.

         Uma agenda feminista, como afirma o manifesto da Marcha Mundial das Mulheres lançado no 8 de Março de 2007, deve fortalecer a luta para que o cuidado da vida humana através do trabalho doméstico seja reconhecido como trabalho e não como uma obrigação natural das mulheres, em decorrência do seu amor pela família. É necessário que este seja assumido também pelos homens e que uma parte seja garantido por políticas do Estado através de creches, restaurantes e lavanderias coletivas.

         Para um programa que, ao lado da aprovação da PEC 393/01, que reduz a jornada de trabalho para 40 horas, é necessário defender:

O desenvolvimento de políticas públicas diferenciadas que considerem o acesso, a permanência e a ascensão profissional das mulheres. As políticas públicas devem considerar essa realidade, priorizando, por exemplo, as mulheres nos programas habitacionais e de geração de emprego;Ampliação de equipamentos públicos voltados para a educação, qualificação profissional, saúde, lazer, dentre outros; Instalação de creches nos espaços públicos e nos locais de trabalho;Ratificação da Convenção 156 da OIT, que trata da responsabilidade familiar; Ratificação da Convenção 158 da OIT, que dispõe sobre a demissão imotivada; Aplicação da Convenção 100 da OIT: salário igual para trabalho igual; e da Convenção 111: igualdade de oportunidades entre homens e mulheres; Fortalecimento da fiscalização do trabalho; Contrato coletivo de trabalho com pauta permanente da questão de gênero.

 

Por fim, é necessário enfatizar que a política econômica que privilegia o superávit fiscal primário e os gastos com os juros altos, não tem capacidade de atender o conjunto das reivindicações acima.

Gastos com Educação, Saúde, Habitação e Juros realizados pela União

 

 

A continuidade da lógica ortodoxa de privilegiar o câmbio elevado e juros altos, mantém o aprofundamento da desigualdade social, ao engessar o Estado para o financiamento de políticas públicas universalizantes. O gráfico acima (*) demonstra como tem diminuído, dentro desta lógica, os investimentos em saúde e educação, ao mesmo tempo em que aumenta assustadoramente os recursos públicos para pagamento de juros.

Portanto, na agenda feminista pela redução da jornada de trabalho, a palavra de ordem em destaque precisa ser a mudança da atual política econômica. Assim, a redução da jornada de trabalho sem redução de salários poderá contribuir para a geração de mais e melhores empregos.

 

(*) gráfico retirado de ANTUNES, Davi & GIMENEZ, Denis. Transferência de renda aos ricos e aos pobres no Brasil. In: Carta Social e do Trabalho, n. 05. Campinas: CESIT, 2007.