Subcidadania laboral e o nível de sindicalização: precarização a ser rompida
Publicado: 03 Junho, 2025 - 00h00 | Última modificação: 03 Junho, 2025 - 10h19
A ABRAT realizou de 29 a 30 de maio, em Maceió, o IX Encontro de Direito Sindical, onde palestrei sobre “Subcidadania laboral e nível de sindicalização”. Esta é uma excelente oportunidade para abordar este fenômeno multifacetado.
A evolução do percentual de sindicalização no Brasil diz muito sobre a subcidadania laboral. O percentual médio de sindicalização no período 2022/23 foi de 8,8%, praticamente a mesma média do período 1930-44, que foi de 8,9%. Entre estes dois períodos o percentual médio de sindicalização mais alto se verificou no período 1978-89, que foi de 22,3%. O crescimento da sindicalização está diretamente ligado à industrialização e capacidade de mobilização do movimento sindical. A queda ocorre com o início da implantação do neoliberalismo, com a desindustrialização e com medidas antissindicais adotadas no início da década de 1990, como o interdito proibitório. A partir de 1994, há uma estreita relação entre o controle da inflação, a menor visibilidade dos sindicatos em decorrência de movimentos de massa de menor dimensão. A desindustrialização e o crescimento do setor de comércio e serviços impactaram fortemente o percentual médio de sindicalização.
Apesar dos avanços sociais e econômicos conquistados em diferentes períodos de sua história, o Brasil ainda se depara com um desafio persistente no mundo do trabalho: a subcidadania laboral, agravado pela desindustrialização, volatilidade econômica, precarização, fragmentação do trabalho e queda nos percentuais de sindicalização. O primeiro fenômeno se caracteriza pela privação ou restrição do pleno exercício dos direitos e garantias inerentes ao trabalhador, pelo trabalho informal ou precarizado.
Houve uma elevação expressiva dos Microempreendedores Individuais (MEI’s), que saíram de 4 milhões em 2015 para mais de 15 milhões em 2024, além dos trabalhadores e trabalhadoras por plataforma e/ou conta própria, distantes do assalariamento por carteira.
A recessão econômica 2015/16 e o baixo crescimento posterior afetou as bases industriais. Com a reforma trabalhista de 2017 e os ataques sistemáticos à organização sindical, cortando drasticamente sua fonte de receita sem nada colocar no lugar. Houve enorme perda da capacidade de mobilização, com aceleração e generalização da queda da sindicalização, precarização (terceirizações e “pejotizações”) e desestímulo à negociação coletiva com a flexibilização da legislação trabalhista. De 14,4 milhões de sindicalizados em 2012 caiu para 8,4 milhões em 2023.
As mutações na classe trabalhadora tiveram alto impacto. Os ramos com percentuais de sindicalização maiores e que puxavam as principais mobilizações sindicais tiveram drástica queda no percentual de sindicalizados, mas, além disso, perderam relevância em número de trabalhadores para ramos com menor capacidade de mobilização.
A tabela abaixo revela a evolução do percentual de sindicalização de todos os sindicatos em cada ramo e a evolução da representação dos sindicalizados em cada ramo em relação ao total de sindicalizados.
RAMO | 2012 | 2023 | ||
| % Sócios | % do Total | % Sócios | % do Total |
Financeiro | 32,5 | 2,8 | 16,5 | 3,1 |
Metalúrgico | 29 | 6,6 | 13,3 | 4,9 |
Educação | 26,5 | 9,3 | 16,8 | 13,6 |
Administração Pública | 26,3 | 4,8 | 16,9 | 5,0 |
Alimentação | 23,7 | 2,9 | 12,4 | 3,2 |
Urbanitário | 23,5 | 1,3 | 13,3 | 1,2 |
Seguridade social e saúde | 23,4 | 5,4 | 11,5 | 8,1 |
Químico | 22,6 | 4,4 | 11,0 | 3,9 |
Comércio | 9,7 | 25,6 | 4,8 | 25,7 |
Construção | 9,4 | 5,6 | 3,8 | 3,9 |
Rural | 22,8 | 16,2 | 15,0 | 14,5 |
Fonte: elaboração a partir de dados da Subseção DIEESE/CUT-Nacional a partir dos microdados da PNAD Contínua (1ª visita) dos respectivos anos |
Neste período o percentual de empregados em relação aos ocupados:
- Caiu de 39,16% para 37,41% no setor privado com carteira assinada
- Aumentou de 12,60% para 13,31% no setor privado sem carteira assinada;
- Caiu de 1,61% para 1,44% no setor público com carteira assinada;
- Aumentou de 2,45% para 3,13% no setor público sem carteira assinada;
- Aumentou de 22,44% para 25,39% no setor trabalho por conta própria;
A queda foi mais pronunciada entre profissionais de ensino superior, ensino técnico, funções administrativas, operadores e operadoras de máquinas. A partir de 1989 cresceu o número de sindicatos e o crescimento do emprego ocorreu em atividades com baixa densidade sindical: “sociedade de serviços”.
A queda nos percentuais de sindicalização e na capacidade de mobilização limitam a força das entidades para defender direitos, ampliar conquistas e acumular forças. Vê-se que tanto a subcidadania laboral como o nível de sindicalização estão umbilicalmente ligados e decorrem destacadamente das transformações no mundo do trabalho e dos sistemáticos ataques à organização sindical.
A fragilização do movimento sindical e a consequente diminuição da representação coletiva dos trabalhadores criam um terreno fértil para a perpetuação de condições de trabalho precarizadas, configurando um ciclo vicioso que urge ser compreendido e rompido. Não nos esqueçamos que o trabalho precário, com resquícios escravagistas, ainda é constatado nas fiscalizações do Ministério Público do Trabalho.
A subcidadania laboral transcende a informalidade, embora esta seja uma de suas manifestações mais visíveis. Ela se manifesta quando o trabalhador, mesmo aquele formalmente empregado, é submetido a condições que o afastam da plenitude dos direitos estabelecidos na Constituição Federal, na legislação trabalhista, nas convenções coletivas. Enfim, quando:
- Recebe salários ou pagamentos pelos serviços prestados insuficientes para garantir uma vida digna.
- Está submetido a jornadas de trabalho exaustivas, muitas vezes sem o devido pagamento de horas extras ou respeito aos períodos de descanso.
- A segurança e a saúde no trabalho são instáveis e insuficientes, resultando em acidentes, doenças ocupacionais e síndromes de todo tipo.
- Há restrição ou negação de direitos fundamentais como férias, 13º salário, FGTS, seguro-desemprego, licença-maternidade/paternidade etc.
- Há dificuldade de acesso à justiça para a defesa de direitos ou para combater abusos.
- As práticas antissindicais são rotineiras e resultam em fraca organização sindical de base e baixa representatividade nos ambientes de trabalho, impedindo a participação nas decisões que afetam sua vida profissional.
A ascensão de novas modalidades de trabalho, como o trabalho por plataformas digitais (aplicativos de entrega, transporte, etc.) e a crescente "pejotização" (transformação de empregados em Pessoas Jurídicas) e terceirização têm exacerbado o problema. Nesses cenários, a ausência de um vínculo empregatício formal muitas vezes significa a ausência de direitos trabalhistas básicos, relegando esses trabalhadores a uma condição de extrema vulnerabilidade e, em última instância, de subcidadania.
O Brasil tem observado uma queda significativa na taxa de sindicalização nas últimas décadas e atualmente menos de 15% dos empregados formais são sindicalizados. Percentual que cai pela metade se considerarmos o conjunto da classe trabalhadora. Diversos fatores contribuem para esse declínio, mas a Reforma Trabalhista de 2017 é, sem dúvida, um marco divisor. Ao extinguir a contribuição sindical compulsória sem ter assegurado um sistema de financiamento em seu lugar, a reforma abriu as portas para todo tipo de prática antissindical. Agora, usam fraudes de associações artificialmente criadas contra os aposentados no INSS para atacar o financiamento sindical via contribuições assistenciais ou negociais, praticadas no Brasil desde a década de 1960.
A queda na sindicalização é um fenômeno mundial, derivado das profundas transformações no mundo do trabalho, da proliferação de um individualismo nefasto e da dificuldade das organizações sindicais de atuar nas novas circunstâncias, onde tudo que é sólido desmancha no ar, ou se liquefaz: os contratos de trabalho, quando existem, deixam gradativamente de ser por tempo indeterminado, assim como os casamentos já não são até que a morte os separe.
Os trabalhadores exercem sua profissão em empresas inseridas em cadeias globais, que se apresentam aos trabalhadores de forma fragmentada. A pulverização dos vínculos e a precarização dos contratos dificultam a organização coletiva. O recrudescimento do antissindicalismo patronal, expresso nos sistemáticos ataques à organização sindical e aos direitos trabalhistas, previdenciários e sindicais, no judiciário, no parlamento e no dia a dia, revela que para conter a superexploração só uma organização sindical forte, representativa e de massas.
Neste novo contexto, há uma legião de jovens trabalhadores que desconhecem seus direitos e a importância histórica e social do movimento sindical. A percepção que se tem é que grande parte da sociedade padece de um adoecimento social. Milhares acreditam que a terra é plana e outras irracionalidades como Bebê Reborn. Diante da incerteza, da instabilidade e da insegurança na vida e no trabalho, em um mundo marcado pela naturalização da violência, templos religiosos ficam lotados, enriquecendo pastores e lhes conferindo poder político. Basta ver nas mãos de quem está o controle da maioria dos canais de TV abertas no Brasil.
Os massacres contra crianças em Gaza são vistos com a mesma naturalidade dos assassinatos de pobres, de negros e de mulheres nas periferias todos os dias, como mostram os programas sensacionalistas. A desgraça tem sido naturalizada, como revelam as denúncias de trabalhos com resquícios escravagistas. Tudo isso é subcidadania.
Os trabalhadores, destacadamente os informais e precarizados, já não procuram os sindicatos, como passaram a fazer com o novo sindicalismo. Procuram igrejas evangélicas ou buscam proteção dos traficantes em seus territórios que, por vezes, lhes atendem melhor que o Estado. E os sindicatos estão longe dos territórios onde as batalhas pela vida se realizam diariamente.
Não superaremos a subcidadania sem sindicatos fortes e representativos e não teremos estes sindicatos sem que as direções se aproximem de suas bases e passem a atuar unitariamente nos territórios, buscando ampliar sua representação e aumentar sua representatividade. Este tem sido um objetivo estratégico que temos perseguido nas negociações com o governo, com a classe patronal e com o parlamento, cientes que mudanças legislativas apenas não bastam.
Para atrair e manter filiados, os sindicatos precisam se adaptar às novas realidades do trabalho, aproximar-se dos territórios onde vivem os trabalhadores informais, precarizados, autônomos, pejotizados e terceirizados, apresentando-lhes um sindicalismo inovador, ágil, capaz de oferecer serviços relevantes e se comunicar de forma mais eficaz com as novas gerações de trabalhadores.
A relação entre subcidadania laboral e baixa sindicalização é mais que estreita, ela é orgânica. Existe uma relação de causa e efeito inequívoca entre a subcidadania laboral e o baixo nível de sindicalização. Um sindicalismo enfraquecido, com representação fraca e baixa representatividade reduz a força da voz coletiva. Sem sindicatos fortes, os trabalhadores perdem seu principal instrumento de barganha e defesa de seus interesses. A negociação individual, via de regra, favorece o lado mais forte, o empregador.
Sindicatos com fraca presença nos locais e redes de trabalho não têm instrumentos nem força para fiscalizar e denunciar as irregularidades. Sem capacidade de liderar movimentos amplos e falar com o conjunto da classe trabalhadora, as direções sindicais não têm força para influenciar a formulação de políticas públicas e barrar retrocessos legislativos que precarizam o trabalho. Sem falar e ser ouvido pelo conjunto da classe trabalhadora, as centrais sindicais não têm força para contribuir para mudar a correlação de forças no congresso.
Nas circunstâncias desfavoráveis que o movimento sindical tem atuado desde a reforma trabalhista, reverter a subcidadania laboral e a queda nos percentuais de sindicalização tem sido uma tarefa muito difícil. A situação estaria dramática não fosse o acúmulo de forças do sindicalismo no último quarto do século XX, que ungiu a vitória de um líder como Lula em 2002, capaz de superar todos os ataques que sofreu e retornar à Presidência da República. Aquele sindicalismo já não existe mais porque aquela classe trabalhadora deixou de existir. As circunstâncias são outras e demandam um novo sindicalismo, que precisa emergir do interior dos atuais, superando-os.
A expetativa em relação a Lula são imensas. Entretanto, estamos vivendo um parlamentarismo tão informal como o trabalho. A extrema direita e o centro organizaram institucionalmente um cerco ao presidente. A execução orçamentária revela que os presidentes da Câmara e do Senado agem como primeiros ministros. Querem impor o mesmo controle ao Poder Judiciário, que sente a pressão e faz concessões, como tem feito TST e STF sempre que votam questões trabalhistas.
Chama atenção o aumento das decisões monocráticas em questões trabalhistas no STF. De 371 em 2017, para 2,030 em 2019 e 3.030 em 2024. É preciso desvendar os olhos para a realidade social, escutar o que dizem sindicatos e movimentos sociais e voltar a valorizar a Justiça do Trabalho, especializada e com acúmulo de mais de oitenta anos julgando reclamações trabalhistas, previdenciárias e sindicais.
Os sistemáticos ataques enfraquecem os sindicatos. A diminuição da sindicalização cria um vácuo de poder na relação capital-trabalho, tornando os trabalhadores mais suscetíveis à exploração e à violação de seus direitos, empurrando-os para a subcidadania laboral. Por sua vez, trabalhadores nesta condição, fragilizados e com medo de retaliação, têm maior dificuldade de se organizar e se sindicalizar, fechando um ciclo vicioso de precarização.
Para romper esse ciclo e promover a cidadania plena no trabalho, o fortalecimento do movimento sindical é não apenas desejável, mas essencial. Isso implica em:
Reorganização e inovação. Os sindicatos precisam se adaptar às novas realidades do mundo do trabalho, buscando formas de organização que contemplem trabalhadores informais, por plataforma e PJ, oferecendo serviços e benefícios que fidelizem os filiados.
Formação e Conscientização: É fundamental investir em cursos de formação massificados, para os trabalhadores sobre seus direitos, a história das conquistas sociais e a importância da organização coletiva.
Luta pela valorização das negociações coletivas e pela reversão dos retrocessos da Reforma Trabalhista e a construção de um novo arcabouço legal que proteja os trabalhadores, valorize a negociação coletiva e assegure mecanismos justos e transparentes de financiamento das entidades sindicais.
Combate às práticas antissindicais. É preciso denunciar e combater as práticas discriminatórias e repressivas contra a organização sindical, garantindo a liberdade de associação e a soberania das assembleias.
Unidade Interinstitucional. A articulação e a unidade entre as diversas centrais sindicais são fundamentais, mas insuficientes nas atuais circunstâncias. O Fórum Interinstitucional em Defesa dos Direitos Sociais (FIDS), para o qual tem contribuído a ABRAT é essencial para fortalecer a luta e aumentar o poder de pressão.
A subcidadania laboral é uma chaga social que mina a dignidade dos trabalhadores brasileiros e impede o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária. Sua erradicação passa, necessariamente, pelo fortalecimento do movimento sindical, que precisa se reinventar. Um sindicalismo forte, representativo e atuante é a principal garantia de que os trabalhadores terão voz, seus direitos serão respeitados e sua cidadania plena será efetivada no ambiente de trabalho. A luta pela superação da subcidadania laboral e por sindicatos fortes e representativos está indissociável da luta pela democracia e por um futuro mais digno para todos.