O programa Mais Médicos
Publicado: 12 Setembro, 2013 - 00h00 | Última modificação: 02 Setembro, 2014 - 16h16
O Programa “Mais Médicos” foi anunciado pelo governo federal como uma das medidas para melhorar as condições da saúde pública. Na primeira etapa do programa as vagas foram abertas exclusivamente para médicos formados no Brasil, entretanto os municípios que mais necessitam de profissionais não tiveram nenhum candidato inscrito. São mais de 700 municípios que não possuem nenhum médico atualmente, e, assim como nenhuma pessoa deveria ser coagida a ter que se mudar para estas áreas, independente de sua profissão, ninguém deveria criar dificuldades para aqueles que se disponham a ir trabalhar nestas regiões, independente de sua nacionalidade.
São cidades localizadas nas áreas mais distantes do Brasil, um país continental e com realidades tanto climáticas como ambientais distintas. A maioria destas cidades não possui qualquer infraestrutura, não possuem boas escolas, bons hospitais, algumas não possuem sequer rede elétrica ou água encanada, não dispõem de cobertura celular, acesso a internet, saneamento básico e tudo aquilo que para nós que vivemos nos grandes centros urbanos parece corriqueiro e essencial à vida moderna. Nestas regiões, portanto, não faltam apenas médicos, além de todos os demais profissionais da área de saúde, falta também educação, segurança pública, engenheiros, advogados, juízes, promotores, etc.
Estas cidades não são atrativas, para quem cresceu na zona urbana, independente de qual a sua formação profissional. Apesar de toda esta dificuldade o fato é que existem milhões de brasileiros que vivem nestas regiões e que a presença de médicos nestes locais é um fator determinante para melhorar as condições de vida desta população. O médico sozinho não será a solução para todos os problemas, entretanto não é possível conceber que será possível esperar que todo o problema estrutural seja resolvido antes do primeiro médico se fixar nestas regiões.
Mesmo considerando os números médios nacionais veremos que o Brasil tem uma média de 1,8 médicos pra cada mil habitantes. Em comparação com outros países, é um número baixo: a Venezuela tem 1,9, o México tem 2,4, a Argentina tem 3,2 e Cuba tem 6 médicos para cada mil habitantes. A má distribuição agrava ainda a mais a situação, pois enquanto na região Sudeste essa média se mantém em torno dos 2,6, a região Norte conta apenas com 0,98 médico por mil habitantes. Em outras palavras: não existem médicos na quantidade necessária e, mais do que isso, eles não estão bem distribuídos pelo país [1].
Apesar de ser essencial uma melhor distribuição dos médicos pelo território nacional, mais importante ainda, é debatermos o modelo de medicina praticado no Brasil.
A formação de profissionais de saúde, com quase 58% de escolas privadas, é voltado para um tipo de atendimento vinculado à indústria de equipamentos de alta tecnologia, aos laboratórios e às vantagens do regime híbrido, em que é possível conciliar plantões de 24 horas no sistema público com consultórios e clínicas particulares.
Formamos 13 mil médicos [1] anualmente no Brasil, porém quase todos oriundos das classes média e alta das grandes cidades, sem qualquer contato ou preparo para atuar nos grotões do país. O modelo da medicina aplicada em nosso país não é dedicado à rotina da prevenção, além da dependência das parafernálias tecnológicas para a obtenção de diagnósticos. Tanto os médicos como a maioria da sociedade brasileira não possuem uma cultura de pensar a saúde em sua integralidade, inclusive desde a medicina preventiva. Desde a faculdade os profissionais são treinados para atender em hospitais e induzidos a buscar uma especialização, da mesma forma que grande parte de nós só procuramos um médico quando estamos doentes e com isso ajudamos a propagar uma cultura de medicina curativa e hospitalocêntrica que só interessa a uma pequena elite que afere lucros com a venda de remédios, realização de exames, venda de equipamentos, etc.
Não somos o primeiro país a buscar médicos de fora para enfrentar a falta de profissionais no interior do país. Enquanto aqui apenas 1,8% dos médicos são estrangeiros, no Reino Unido esse índice é de 37% e nos Estados Unidos, de 20% [2].
O envio de médicos cubanos para atuar no exterior não se trata de imigração de profissionais, mas ao contrário se trata de um acordo bilateral entre governos e estes profissionais são servidores cubanos em missão humanitária, não apenas para auxiliar o país que os recebe, mas fundamentalmente a serviço de Cuba, por isso estes profissionais não são remunerados pelos países que os recebem e sim pelo governo cubano. Ou seja, o Brasil deverá enviar R$ 10 mil ao governo da ilha para cada médico que venha atuar no programa mais médico e caberá ao governo da ilha remunerar os médicos cubanos. Assim como quem remunera os trabalhadores da EMBRAPA que atuam na África não são os governos africanos e sim a estatal brasileira. Todos os acordos bilaterais quando um país envia militares, médicos ou mesmo técnicos e engenheiros a remuneração destes profissionais fica sob a responsabilidade do país de origem do profissional e não do país que está recebendo ajuda. É assim, por exemplo, quando o Brasil envia funcionários da Embrapa para auxiliar países africanos.
O envio de médicos cubanos a partir de acordos bilaterais não é uma novidade, atuam no mundo inteiro desde 1963 e se tornaram grandes exemplos na promoção de saúde preventiva nas regiões mais pobres do mundo. Mesmo o Brasil já recebeu na década de 90 centenas de médicos cubanos para atuar em regiões remotas no Brasil.
O perfil dos primeiros cubanos que chegaram ao país demonstra a qualificação e experiência destes profissionais em ações humanitárias ao redor do mundo. 84% deles têm mais de 16 anos de exercício da medicina, 100% têm especialização em Saúde da Família, 20% mestrado nessa especialidade, todos já cumpriram missões no exterior, quase a metade mais de uma e estão acostumados a conviver com carências sociais e doenças tropicais [3].
A vinda de médicos estrangeiros para atuar nestas áreas não ameaça em nada os médicos formados no Brasil, sequer disputarão mercado com estes, pois terão área e período de atuação limitados. O que verdadeiramente assusta a elite médica brasileira não é a presença de estrangeiros, tampouco é a qualificação profissional destes, pois se a preocupação fosse com a qualificação, deveria se voltar não apenas para os estrangeiros, mas principalmente para os 13 mil formandos anualmente nas faculdades brasileiras. Qual seria o percentual de aprovação dos formandos brasileiros se tivessem que se submeter ao “revalida” assim como exigem dos estrangeiros?
A aversão e reação à vinda de médicos cubanos entretanto expõe o pavor que uma certa elite da classe médica tem diante dos êxitos inevitáveis do modelo adotado na ilha, que prioriza a prevenção e a educação para a saúde, reduzindo não apenas os índices de enfermidades, mas sobretudo a necessidade de atendimento e os custos com a saúde. Isso não diminuiria os postos de trabalho para os médicos brasileiros, mas certamente reduziria os lucros dos hospitais, dos laboratórios, da indústria farmacêutica, etc.
É nesse sentido que saudamos a vinda dos médicos estrangeiros e o programa Mais Médicos, pois compreendemos que este é um importante passo não apenas para a interiorização da medicina e para combater o êxodo para os grandes centros urbanos, mas para aproveitarmos para debater o modelo de saúde que queremos. Por isso, conclamamos a nossa militância a contribuir com essa discussão, assim como receber e favorecer o acolhimento destes profissionais.
[1] Fontes: Exposição de Motivos EMI nº 00024/2013 MS MEC MP
[2] Fontes: Exposição de Motivos EMI nº 00024/2013 MS MEC MP
[3] OPAS/OMS - Organização Pan-Americana da Saúde