A Alca vem na bagagem de Bush
Publicado: 05 Março, 2007 - 00h00
Em poucas palavras, o embaixador norte-americano no Brasil, Clifford Sobel, explicou a missão de George W. Bush em seu périplo pela América Latina. “Nosso foco para a América Latina está em nossos amigos. A agenda com Brasil, Argentina, Peru e outros paÃÂses é positiva. A agenda com Chávez não é”, disse ele. Essa afirmação confirma que os temores de que os Estados Unidos pretendem rachar a união dos paÃÂses sul-americanos, na velha estratégia de dividir para governar, não são exagerados.
Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, em sua edição do dia 26 passado, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos prepara uma ofensiva diplomática para eliminar barreiras burocráticas às empresas norte-americanas que atuam na América Latina. “Nossos objetivos em relação àcriação da ÃÂrea de Livre Comércio das Américas (Alca) ainda são claros. Mas sabemos que no momento não há como ter negociações. Ao contrário do que se disse, não ignoramos a região. As relações com o Brasil estão em um momento extremamente positivo, mas todos temos consciência de que o fluxo de importações e exportações poderia ser bem maior”, disse o vice-presidente de Comércio dos Estados Unidos, Walter Bastian.
Opinião é opinião — cada um tem o direito de ter a sua. Entender de fato o que está se passando é outra questão. A verdade é que os motivos norte-americanos para essa nova ofensiva vão além do comércio. São objetivos de Estado. De um lado, está um Estado imperialista, com interesses especÃÂficos consolidados politicamente. De outro, estão Estados comandados por forças populares que tentam consolidar polÃÂticas soberanas que defendam seus interesses. São água e óleo. Essa nova estratégia norte-americana faz parte de uma espécie de redivisão internacional do trabalho, pela qual a produção ficaria para os malaios, os indonésios, os mexicanos, os brasileiros. O “Primeiro Mundo” se limitaria a produzir idéias, modelos, campanhas de marketing, logÃÂstica, sites, comunicação visual, administração, finanças e desenvolvimento tecnológico.
As empresas norte-americanas fora dos Estados Unidos já vendem algo próximo de 1 trilhão de dólares por ano. Isso é quatro vezes mais que toda a receita de exportação dos Estados Unidos e sete vezes mais que todo o déficit comercial norte-americano. A América Latina sob a égide da Alca seria o paraÃÂso para essas empresas. Eis a tradução lÃÂmpida do que Bastian quis dizer com sua crÃÂtica aos limites ao fluxo de importações e exportações entre Brasil e Estados Unidos. Quando Luis Inácio Lula da Silva chegou àPresidência da República, uma de suas primeiras ações foi a de desmontar a trama criada pelo governo anterior para a adoção da Alca. Esse é um dos principais motivos do fel que os conservadores destilam contra as atuais lideranças do Itamaraty.
Nó da polÃÂtica comercial brasileira
Mas para quem vê as coisas com os pés na realidade o cenário é outro. Os fatos mostram que durante a “era FHC” exportar era uma das coisas que o Brasil não fazia bem. Se fizesse, não haveria tanta gente — Apex, Camex, Decex, Funcex, CCEX, Secex, Cacex — rimando e remando para fazer do Brasil um exportador medÃÂocre. Quando FHC deixou BrasÃÂlia, o Brasil respondia por apenas 18% das exportações latino-americanas. Outro exemplo da debilidade brasileira àépoca: em 1997, o paÃÂs exportou 109 milhões de dólares em frutas — só 0,43% das vendas internacionais do produto no perÃÂodo, que foram de 25 bilhões. (Pior: o Brasil comprou 237 milhões de dólares em frutas naquele ano, amargando, numa categoria em que teria significativas vantagens competitivas, um déficit de 128 milhões.)
O Brasil era, enfim, um exportador acanhado. Várias vezes, e em muitos aspectos, canhestro. Eis a questão: por quê? A análise deve partir da natureza econômica daquele governo. No imaginário daquela gente existe a idéia de que o mercado externo se reduz aos Estados Unidos e àEuropa. Empresa brasileira molhando os pés em águas internacionais do Sul do planeta era uma imagem que jamais freqüentou o pensamento daquela “era”. Para eles, a idéia de que o Brasil deveria fincar sua bandeira em outras terras soava exótica. Quando a polÃÂtica externa do governo Lula chegou, o Brasil logo mostrou como desataria o nó da polÃÂtica comercial brasileira, responsável por seguidos déficits desde a implantação do “Plano Real”: o governo sairia pelo mundo, disputando terreno em vários mercados. Para os novos lÃÂderes do Itamaraty, eventuais perdas em uma trincheira mundo afora poderiam ser compensadas por ganhos em outra.
Escandalosos subsÃÂdios agrÃÂcolas
Em agosto de 2002, Lula, ainda candidato àPresidência da República, entregou uma carta a FHC, durante o encontro com os candidatos no Palácio do Planalto, em BrasÃÂlia, na qual disse que era urgente “gerar um elevado superávit comercial, fundado no aumento expressivo das exportações, de modo a diminuir a vulnerabilidade do paÃÂs com relação àvolátil liqüidez internacional”. “Isso requer, de imediato, uma ampla ofensiva diplomática, que mobilize todas as embaixadas e consulados brasileiros para apoiar o esforço exportador do Brasil. Exige, além do mais, uma ação decidida nas frentes de negociação internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), contra o protecionismo injustificado e os subsÃÂdios indevidos dos paÃÂses ricos que prejudicam as vendas de nossos produtos, como o suco de laranja, o açúcar, a soja e o aço, entre outros”, dizia a carta.
Na sua posse, Lula disse que, “em relação àAlca, nos entendimentos entre o Mercosul e a União Européia, na OMC o Brasil combaterá o protecionismo, lutará pela sua eliminação e tratará de obter regras mais justas e adequadas ànossa condição de paÃÂs em desenvolvimento”. “Buscaremos eliminar os escandalosos subsÃÂdios agrÃÂcolas dos paÃÂses desenvolvidos que prejudicam os nossos produtores privando-os de suas vantagens comparativas. Com igual empenho, esforçaremo-nos para remover os injustificáveis obstáculos às exportações de produtos industriais. Essencial em todos esses foros é preservar os espaços de flexibilidade para nossas polÃÂticas de desenvolvimento nos campos social e regional, de meio ambiente, agrÃÂcola, industrial e tecnológico”, afirmou.
Preceitos democráticos
Lula disse ainda que a grande prioridade da polÃÂtica externa do seu governo seria “a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social”. “Para isso é essencial uma ação decidida de revitalização do Mercosul, enfraquecido pelas crises de cada um de seus membros e por visões muitas vezes estreitas e egoÃÂstas do significado da integração. O Mercosul, assim como a integração da América do Sul em seu conjunto, é sobretudo um projeto polÃÂtico. Mas esse projeto repousa em alicerces econômico-comerciais que precisam ser urgentemente reparados e reforçados”, disse o presidente.
Lula disse com palavras claras que priorizaria as relações com os paÃÂses vizinhos. “Cuidaremos também das dimensões social, cultural e cientÃÂfico-tecnológica do processo de integração. Estimularemos empreendimentos conjuntos e fomentaremos um vivo intercâmbio intelectual e artÃÂstico entre os paÃÂses sul-americanos. Apoiaremos os arranjos institucionais necessários, para que possa florescer uma verdadeira identidade do Mercosul e da América do Sul. Vários dos nossos vizinhos vivem hoje situações difÃÂceis. Contribuiremos, desde que chamados e na medida de nossas possibilidades, para encontrar soluções pacÃÂficas para tais crises, com base no diálogo, nos preceitos democráticos e nas normas constitucionais de cada paÃÂs”, afirmou.
Novas relações internacionais
O presidente também falou das relações de seu governo com os Estados Unidos e a União Européia. “Procuraremos ter com os Estados Unidos da América uma parceria madura, com base no interesse recÃÂproco e no respeito mútuo. Trataremos de fortalecer o entendimento e a cooperação com a União Européia e os seus Estados-Membros, bem como com outros importantes paÃÂses desenvolvidos, a exemplo do Japão”, disse. Mas ressaltou que não deixaria de dar atenção a outras regiões do planeta. “Aprofundaremos as relações com grandes nações em desenvolvimento: a China, a ÃÂndia, a Rússia, a ÃÂfrica do Sul, entre outros. Reafirmamos os laços profundos que nos unem a todo o continente africano e a nossa disposição de contribuir ativamente para que ele desenvolva as suas enormes potencialidades”, afirmou Lula.
O discurso reforçou o aspecto polÃÂtico das novas relações internacionais do Brasil. “Visamos não só a explorar os benefÃÂcios potenciais de um maior intercâmbio econômico e de uma presença maior do Brasil no mercado internacional, mas também a estimular os incipientes elementos de multipolaridade da vida internacional contemporânea. A democratização das relações internacionais sem hegemonias de qualquer espécie é tão importante para o futuro da humanidade quanto a consolidação e o desenvolvimento da democracia no interior de cada Estado”, disse o presidente.
Verdadeira marca da maldade
Com essa polÃÂtica, o Brasil ajudou a despachar o conservadorismo sul-americano, no que diz respeito a polÃÂticas externas — com expressões de pesar e desapontamento manifestadas pela mÃÂdia —, para a vala comum onde jazem as carcomidas idéias neoliberais que no passado recente floresceram na região. Por aqui, a maior parte do encanto com o neoliberalismo já se desfez há tempos, moÃÂdo por ÃÂndices vergonhosos de injustiças sociais, pela violência, pela inépcia geral da administração e pelo que existe de pior na polÃÂtica. Com o tenebroso desfile público das práticas de gangsterismo que se sucederam em volta desses governos, os povos da região deram demonstrações de não querem mais ver seus paÃÂses no balaio geral de roubalheira, irresponsabilidade e primitivismo que marcaram as polÃÂticas neoliberais. São práticas que fizeram seus defensores perderem o odor de santidade com o qual se apresentavam ao público.
Mas a verdadeira marca da maldade está impressa no DNA dessa gente. Infelizmente, a democracia do jeito que ela é entendida e praticada atualmente em boa parte do mundo abre as portas para todo tipo de aventureiro, impostor ou gângster que queira se aproveitar dela para impor seus desatinos. O resultado de tantas deformações é que essa gente acha que a vida pública deve ser uma vasta operação comercial. Ãâ° o sistema que gera essa gente, da mesma maneira que a água parada gera o mosquito da dengue. Lutemos, portanto, contra esse sistema dizendo, em alto e bom som, ao presidente norte-americano quando ele tocar em qualquer parte do solo latino-americano: Fora, Bush!