Escrito por: André Accarini

COP30: CUT denuncia modelo neocolonial da transição e violações em Serra do Mel

Debate promovido pela CUT e parceiros destacou impactos sociais, ambientais e econômicos de projetos de energia renovável no Nordeste, com destaque para o caso Serra do Mel (RN)

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O avanço de projetos eólicos e solares no Nordeste, marcado por denúncias de violações de direitos humanos, impactos ambientais e precarização do trabalho, foi tema central do debate “As energias renováveis e seus impactos nos territórios: o caso Serra do Mel”, realizado nesta quinta-feira (13) na COP30. A atividade, promovida pela CUT Brasil em parceria com a Fundação Friedrich Ebert (FES), o Inesc e outras organizações, aprofundou críticas a um modelo considerado neocolonial, no qual grandes corporações transnacionais expandem empreendimentos sem regulação adequada e com prejuízos diretos para trabalhadores e comunidades.

Representantes de sindicatos, universidades, organizações de pesquisa e entidades internacionais alertaram que, embora classificadas como “limpas”, as energias renováveis estão sendo implantadas sob uma lógica de exploração que aprofunda desigualdades e sacrifica territórios vulnerabilizados. O estudo de caso de Serra do Mel (RN), apresentado no debate, demonstrou que empresas como a francesa Voltalia vêm adotando práticas como o fracionamento de projetos para evitar licenciamento ambiental adequado e reduzir obrigações socioambientais, ao mesmo tempo em que deixam baixíssimo retorno econômico para as comunidades locais.

Transição energética ou “processo neocolonial”?

A Secretária de Políticas Sociais e Direitos Humanos da CUT, Jandyra Uehara, abriu o debate situando a transição energética no contexto de uma crise global do capitalismo, atravessada por dimensões políticas, econômicas, culturais e ambientais. Segundo ela, o Brasil está no centro da disputa internacional por seus recursos naturais, o que exige maior articulação do movimento sindical.

Jandira destacou que o país reúne uma combinação de riquezas raras e estratégicas. Vento, especialmente na região Nordeste, nós temos sol, nós temos minerais, água e um território imenso de riquezas”, disse a dirigente ressaltando que o fato, naturalmente, desperta a cobiça de corporações globais. Para ela, porém, o processo em curso está longe de ser justo

O que está ocorrendo no Brasil não é uma transição justa, mas um processo neocolonial. Precisamos perguntar se vivemos uma transição energética ou se estamos presenciando os negócios do clima- Jandyra Uehara


Ela ressaltou que os impactos sociais recaem sobre territórios classificados como receptores de energia “dita limpa, mas em processos sujos e injustos”, e lembrou que essa é uma “luta do Sul Global diante de processos totalmente vinculados à acumulação do capital”.

Regulação, articulação e enfrentamento: lições de Serra do Mel

Jandyra Uehara defendeu maior unidade e organização nos territórios afetados, citando a articulação construída em Serra do Mel, onde sindicatos, movimentos sociais e mandatos parlamentares formaram uma “operativa” de enfrentamento aos abusos empresariais. Ela afirmou que as denúncias apresentadas no Congresso Estadual da CUT/RN foram chocantes.

A CUT já levou as denúncias sobre a Voltália para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e para a Confederação Geral do Trabalho, a CGT francesa.

Ela também ressaltou a importância de fortalecer a luta pela regulação e citou o projeto de lei do deputado Fernando Mineiro (PT-RN), que estabelece salvaguardas socioambientais para energias renováveis. Segundo ela, o parlamentar vem sendo “muito atacado pelos lobistas” do setor.

Fragmentação de projetos, violações e perda de direitos sociais

O advogado Felipe Vasconcelos, do escritório LBS Advogadas e Advogados detalhou como a Voltalia fracionou 40 projetos em Serra do Mel para escapar de licenciamento robusto, permitindo a instalação de torres a 200 metros das casas, enquanto na França a própria empresa respeita distâncias de até 3 km.

Ele apresentou dados do SUS que revelam aumento de transtorno de ansiedade, distúrbios do sono, perda auditiva e sintomas associados à chamada “síndrome da turbina eólica”.

Secretário de Administração e Finanças da CUT-RN, Jocelino Dantas Batista, no debate afirmou que “os contratos de arrendamento são a base de toda essa confusão”. Segundo ele, acordos abusivos que cedem 100% da terra por 50 anos fazem trabalhadores perderem o status de ‘segurado especial’, retirando acesso a benefícios da Previdência rural e crédito do Pronaf.

A economista Patrícia Pelatiere, do Dieese lembrou que a narrativa do desenvolvimento é ilusória. “90% da população de Serra do Mel está no CadÚnico e 60% recebe Bolsa Família”, disse.

O advogado Antônio Megale, também do escritório LBS, confirmou que foi ajuizada Ação Civil Pública exigindo estudo de impacto ambiental corretivo, revisão dos contratos e criação de um fundo de reparação gerido pela comunidade.

Durante o deabte foi apresentado o estudo "Um modelo de transição energética | O caso das usinas eólicas em Serra do Mel, Rio Grande do Norte", que expõe as graves violações de direitos humanos e os impactos socioambientais provocados pela multinacional francesa Voltalia S/A em Serra do Mel (RN), onde 36 empreendimentos eólicos foram instalados após o fracionamento artificial dos projetos para escapar do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA). O estudo da CUT aponta danos à saúde da população, com sintomas associados à Síndrome da Turbina Eólica, prejuízos ambientais, queda da produção agropecuária, inexistência de empregos formais e contratos abusivos que retiram direitos de agricultores familiares. Diante do quadro, a comunidade se organizou e ingressou com uma ação civil pública para exigir reparação dos danos, revisão contratual e uma transição energética justa e transparente.

Leia mais sobre o tema em Usinas eólicas e desenvolvimento em Serra do Mel

Modelo de transição injusto atinge agricultores, pescadores e territórios: pesquisadores expõem violações

Durante o debate, especialistas convidados aprofundaram a análise estrutural da transição energética. A representante da FES, Mariana Blanco, do México, afirmou que o modelo implementado na América Latina tem “características de colonização”, com empresas que “se apoderam de territórios, compram terras, recursos naturais, água, praias, florestas”.  Ela alertou que camponeses e populações rurais perdem trabalho e são empurrados para economias precarizadas, inclusive prostituição, enquanto grupos criminosos e militares passam a disputar terras para mineração de lítio e cobre.

Para Esteliano Neto diretor executivo da CUT, que atua no setor elétrico, afirmou que a transição imposta virou um negócio financeiro. “Virou banco, virou rentabilidade, virou um projeto financista.”

Ele lembrou que em 2023 o Brasil ainda consumia 86% de energia hidráulica, o que não justificaria a pressa atual, segundo ele motivada pelo lucro. O resultado é o aumento de acidentes fatais e condições de trabalho que se aproximam de situações “análogas à escravidão”.

Financiamento regressivo e falta de estratégia

O engenheiro Cássio Carvalho, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) criticou a ausência de diretrizes nacionais e a captura dos ganhos do setor. “A renda do petróleo está servindo para pagar dividendo de acionista e dívida pública”, disse.

Ele destacou ainda que a expansão das renováveis é bancada pela tarifa dos consumidores e por subsídios públicos.

Zonas de sacrifício: Caatinga e litoral ameaçados

A pesquisadora Moema Hofstaetter, do Movimento de Atingidos por Renováveis (MAR), denunciou que o Nordeste está se tornando uma “zona de sacrifício” para atender à demanda energética global. A Caatinga, responsável por quase 50% da absorção bruta de carbono do Brasil em 2022, vem sendo desmatada para projetos solares.

Pescadora artesanal Rita Decásia relatou o impacto dos projetos offshore na costa do Nordeste. “Nossa sobrevivência vai se acabar. A pesca artesanal vai se acabar.” Segundo ela, as torres no mar parecem “uma cerca” que desorienta pescadores e altera rotas migratórias.