Escrito por: Carlos Lopes/Hora do Povo

Serra propagandeia milagres e privatiza poema...




Professores, segurançapública, teatro e muitos outros foram vítimas do discurso de despedida

O discurso de despedida dogovernador José Serra está inscrito numa longa tradição da retórica, por quenão dizer, universal – aquela que promete uma mulher para cada homem e um homempara cada mulher. Sempre na vanguarda, por pouco não revelou que sua operosaadministração conseguiu uma mulher paulista para cada homem paulista e um homempaulista para cada mulher paulista.

Fora isso, conseguiu tudo,até que a criminalidade – em franca alta em todas as suas modalidades, segundoas estatísticas da Secretaria de Segurança – tivesse uma redução espetacular.Isso porque “repudiamos sempre a espetacularização, bravatas, a busca danotícia fácil, o protagonismo sem substância”. Por isso, revelou que “osprofessores e servidores estão ganhando mais”, do que se conclui que ele fazmilagres – os servidores conseguem ganhar mais sem que ele tenha concedidoaumento.

Porém, nada se compara a:“... não pude deixar de me lembrar de uma poesia do Vinícius de Morais, que eu,espero que acreditem, eu também fiz teatro, não é? Fui diretor de teatro naEscola Politécnica. (…) Aprendi muita poesia. Eu me lembrei de uma poesia doVinícius que eu sabia de memória, até hoje eu sei quase toda de memória.Chamada ‘O Operário em Construção’. Ele dizia: ‘Pareceu me, então, que atéaquele momento ele, o operário, desconhecia esse fato extraordinário, que ooperário faz a coisa e a coisa faz o operário. Casa, cidade, nação... Tudo oque existia era ele quem o fazia, ele, um humilde operário, um operário quesabia exercer a sua profissão’. Eu me senti muito realizado, muito emocionado epensei comigo: ‘Olha...Valeu à pena’”.

POEMA

“O Operário Em Construção”não é um poema sobre a mera criação de valor pelo trabalho. É um poema sobre aluta pela liberdade, a recusa do operário a aceitar a expropriação daquilo queé seu, daquilo que criou, e, em especial, é um poema sobre a integridade, sobreos que dizem não a se vender, sobre a eternidade dos que não traem aos outros -e, sobretudo, não traem a si mesmos -, sobre como um ser humano, se tornaconsciente, e recusa degradar sua própria humanidade aceitando o suborno, atraição ou rendendo-se à delação e à tortura. Daí, seu belo final: “E ooperário ouviu a voz/ De todos os seus irmãos/ Os seus irmãos que morreram/ Poroutros que viverão./ Uma esperança sincera/ Cresceu no seu coração/ E dentro datarde mansa/ Agigantou-se a razão/ De um homem pobre e esquecido/ Razão porémque fizera/ Em operário construído/ O operário em construção.”

Esta é a razão porqueVinícius colocou como epígrafe do poema o trecho do Evangelho de São Lucas emque Jesus recusa o assédio de Satanás:

“E o Diabo, levando-o a umalto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. Edisse-lhe o Diabo:

“– Dar-te-ei todo estepoder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero;portanto, se tu me adorares, tudo será teu.

“E Jesus, respondendo,disse-lhe:

“– Vai-te, Satanás; porqueestá escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.”

No poema, Vinícius assimdescreve a recusa do operário:

“Um dia tentou o patrão/Dobrá-lo de modo vário./ De sorte que o foi levando/ Ao alto da construção/ Enum momento de tempo/ Mostrou-lhe toda a região/ E apontando-a ao operário/Fez-lhe esta declaração:/ – Dar-te-ei todo esse poder/ E a sua satisfação/Porque a mim me foi entregue/ E dou-o a quem bem quiser./ Dou-te tempo delazer/ Dou-te tempo de mulher./ Portanto, tudo o que vês/ Será teu se meadorares/ E, ainda mais, se abandonares/ O que te faz dizer não.// Disse, efitou o operário/ Que olhava e que refletia/ Mas o que via o operário/ O patrãonunca veria./ O operário via as casas/ E dentro das estruturas/ Via coisas,objetos/ Produtos, manufaturas./ Via tudo o que fazia/ O lucro do seu patrão/ Eem cada coisa que via/ Misteriosamente havia/ A marca de sua mão./ E o operáriodisse: Não!// Loucura! – gritou o patrão/ Não vês o que te dou eu?/ – Mentira!– disse o operário/ Não podes dar-me o que é meu.”

 Serra, presidente da UNE, abandonou a luta nopróprio dia do golpe de 1964 – refugiou-se na embaixada da Bolívia, deixando aUNE sem presidente, no momento em que os estudantes iriam se transformar naprincipal força que resistiria à ditadura nos anos subsequentes.

Depois de um período noChile, e de um episódio pouco explicado, em que ele foi preso pelos golpistasde Pinochet, levado ao Estádio Nacional, e em seguida liberado sem problemas,Serra foi para os EUA – e, ao contrário de milhares de brasileiros que tiveramalguma participação política, os americanos permitiram que entrasse no país, e,mais: abrigaram-no em duas das universidades privadas mais caras da eliteianque, Cornell e Princeton, onde, mesmo sem graduação, Serra fezpós-graduação. Por que a casta norte-americana investiu num pobretão nascido naMooca, que vivia fazendo discursos esquerdistas antes do golpe que elapatrocinou?

Ao voltar ao Brasil, suaassociação com Fernando Henrique – e com o dinheiro da Fundação Ford (cf., “Os40 anos da Fundação Ford no Brasil”, Fundação Ford, 2002) - é por demaisconhecida, assim como o papel dessa fundação em repassar o dinheiro da CIA (cf.Frances Stonor Saunders, “Quem pagou a conta? – A CIA na Guerra Fria da Cultura”,Record, 2008).

Na mesma época, Serratornou-se o principal editorialista da “Folha de S. Paulo” - como, aliás, elemesmo afirma em seu baboso necrológio do dono desse jornal, conhecido por suacolaboração com a ditadura, pelo acobertamento e apoio a torturas eassassinatos, e uma das publicações mais reacionárias, antinacionais eantipopulares do país.

TEMPO

Sobre os anosimediatamente posteriores, melhor será reproduzir o testemunho de um homem quese considerou durante muito tempo um dos maiores amigos de Serra. Disse ojurista, depois ministro e vice-presidente do Superior Tribunal Militar (STM),Flavio Bierrenbach, no programa eleitoral da campanha de 1988: “Serra entroupobre na Secretaria de Planejamento do Governo Montoro e saiu rico. Ele usa opoder de forma cruel, corrupta e prepotente. Poucos o conhecem. Engana muitagente. Prejudicou a muitos dos seus companheiros. Uma ambição sem limite. Umasede de poder sem nenhum freio”.

O resto, os brasileirosmais jovens sabem – sua participação como ministro do Planejamento e presidenteda Comissão de Privatização de Fernando Henrique, a proliferação de epidemiasquando foi ministro da Saúde, sua indústria de dossiês difamatórios contraadversários, sua afinidade eletiva pelo neoliberal-entreguismo, a sofreguidãoprivatizadora que levou aos desastres no Metrô, Rodoanel, Tietê, Saúde,Educação, Segurança – e mais não dizemos, leitores, porque haverá tempo paradizer e informar tudo o que precisa ser dito e informado.