Escrito por: Rodrigo Chagas- BdF
Entidades denunciam paralisação da Ream e alertam para riscos à soberania energética na região Norte
Privatizada no apagar das luzes do governo de Jair Bolsonaro (PL), em dezembro de 2022, a Refinaria de Manaus (Ream), está praticamente paralisada. A denúncia, feita pelo Sindicato dos Petroleiros do Estado do Amazonas (Sindipetro-AM) e pela Federação Única dos Petroleiros (FUP), foi formalizada em uma carta entregue em mãos ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) neste domingo (14). O documento pede a retomada do protagonismo da Petrobras no setor de refino da região Norte.
A principal acusação é de que a refinaria, operada pelo Grupo Atem desde a privatização, não está mais refinando petróleo, descumprindo sua função estratégica e regulatória. Dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) confirmam que a planta ficou parada por quase um ano sob o argumento de manutenções, e que, mesmo após esse período, retornou com operações irregulares.
“Hoje temos uma refinaria que não refina. Isso significa o descumprimento do papel estratégico de abastecimento”, afirma Marcus Ribeiro, coordenador do Sindipetro-AM. A denúncia feita pelas entidades se baseia em documentos públicos da ANP, em dados do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo e Gás (Ineep) e em relatórios da própria empresa.
A situação se reflete no bolso dos consumidores da região, que pagam os maiores valores do país por combustíveis como gasolina, diesel, etanol e gás de cozinha. Um comparativo feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) com base nos dados da ANP mostra que o preço da gasolina no Amazonas, por exemplo cresceu, entre 2022 e agosto deste ano, 52,6%, enquanto a média nacional do mesmo período cresceu 25,2%.
Elaboração / DieeseEm 2022, a Ream refinava, em média, mais de 900 mil barris de petróleo por mês. Desde o ano passado, deixou de produzir combustíveis e agora funciona apenas como base logística. Em 2025, a unidade processou petróleo apenas em março e abril, em quantidades muito abaixo da média, de acordo com dados da ANP compilados pelo Dieese.
Na carta enviada a Lula, as entidades afirmam que a paralisação da refinaria compromete a soberania energética nacional e prejudica a economia do Norte do país. Segundo a FUP e o Sindipetro-AM, a Ream deixou de processar petróleo produzido em Urucu, no próprio Amazonas, que agora é enviado para São Paulo. Apesar disso, a refinaria segue funcionando como estrutura de apoio logístico para a importação e distribuição de combustíveis.
“Essa paralisação prolongada configura, na prática, a transformação da Ream em um terminal terrestre”, critica Marcus Ribeiro. Para ele, a ausência da Petrobras no refino regional “gera desemprego, perda de mão de obra qualificada, aumento da dependência externa e carestia para a população”.A carta sugere que a Petrobras retome o controle da refinaria. Alternativamente, propõe uma parceria operacional entre a estatal e o Grupo Atem para que o refino local seja restabelecido. “O povo do Norte precisa sentir, na prática, os efeitos de uma Petrobras forte, pública e comprometida com a soberania e com o desenvolvimento regional”, diz o texto.
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Em resposta a questionamentos enviados pelo Brasil de Fato, a ANP informou que encaminhou ofício à Ream no dia 2 de setembro, determinando o cumprimento das regras previstas na Resolução ANP nº 852/2021, que regula a atividade de refino no país. De acordo com o órgão, a refinaria processou petróleo por apenas alguns dias após o fim das manutenções e, em seguida, paralisou novamente as operações.
Além disso, a ANP constatou que a Ream passou a realizar exclusivamente a formulação de combustíveis, o que não é permitido para instalações classificadas como refinaria. Segundo o artigo 33 da resolução, a formulação pode ocorrer apenas como atividade complementar, e não substitutiva ao refino de petróleo cru.
Refinamento é o processamento industrial do petróleo cru em derivados por meio de transformações físicas e químicas, enquanto formulação é apenas a mistura ou aditivação de derivados já prontos para gerar combustíveis comerciais.
“A instalação autorizada como refinaria não pode exercer unicamente atividades de formulação”, diz o ofício assinado por Brunno Atalla, superintendente de produção de combustíveis da ANP. O não cumprimento da norma pode levar à aplicação de penalidades como multas, suspensão temporária da operação ou até a revogação da autorização para funcionar, conforme prevê a Lei n.º 9.847/1999.
Dados do Boletim de Preços dos Combustíveis, publicados em setembro pela ANP, mostram que, enquanto a Petrobras comercializou gasolina e diesel em média 6% a 8% abaixo do preço de paridade de importação (PPI), a Ream foi a única a operar sistematicamente acima dessa referência internacional. O PPI é o valor de referência que estima quanto custaria trazer combustível do exterior, incluindo frete, tarifas e custos logísticos.
Na prática, isso significa que, em agosto, importar combustíveis do exterior teria sido mais barato do que comprá-los da única refinaria instalada no Norte do país.
A Ream foi vendida à iniciativa privada durante o último mês da gestão Bolsonaro, como parte de um programa de privatizações da Petrobras. À época, o então governo afirmava que a venda da Refinaria Isaac Sabbá (Reman), como era chamada até então, aumentaria a concorrência e reduziria os preços.
O resultado, no entanto, foi o oposto. Um ano após a venda, os preços dos combustíveis dispararam na região. Estudo do Ineep mostrou que, em 2023, o diesel vendido pela Ream chegou a custar até 25% mais caro do que o produzido pelas refinarias da Petrobras. O gás de cozinha (GLP), por sua vez, alcançou uma diferença de até 72% em relação ao preço praticado pela estatal.
“Todas as privatizações de refinarias da Petrobras foram desastrosas, mas o caso da Ream é de longe o pior”, avalia o economista Eric Gil Dantas, pesquisador do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (Ibeps). “Além de cobrar mais caro, ela parou de produzir. Isso gera empobrecimento, perda fiscal e dependência da importação.”
Ineep - Fonte ANPDesde a privatização, a Ream passou a operar com capacidade cada vez menor. Em 2022, quando ainda era estatal, a refinaria utilizava 67% de sua capacidade. Em 2024, esse número caiu para pouco mais de 20%, segundo dados do Ineep. Mesmo assim, o Grupo Atem se manteve como principal ofertante de gasolina e diesel no Amazonas.
Com o refino reduzido, a empresa aumentou significativamente as importações de derivados, passando a controlar também a distribuição. “Ela não refina, mas vende. Define o preço sem concorrência, porque virou um monopólio privado regional”, afirma Dantas.
Para Marcus Ribeiro, o cenário compromete o abastecimento regional e a segurança energética do país. “A região Norte, que já tem custos logísticos elevados, está sendo penalizada duas vezes, por não produzir e por depender da importação.”
Outro ponto questionado pelos petroleiros é o valor pago pela refinaria. Segundo estudo do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), o Grupo Atem obteve, por meio de decisões judiciais liminares, cerca de R$ 1,3 bilhão em isenções fiscais nos anos que antecederam e sucederam à compra da refinaria.
O valor é equivalente ao preço pago pela unidade, o que, na prática, significaria que a refinaria foi adquirida sem custo efetivo para o comprador. “A Atem ‘ganhou’ de volta tudo o que pagou pela refinaria em poucos anos”, diz Eric Dantas.
Em seu governo, Bolsonaro privatizou ao menos um terço das empresas estatais.
As entidades sindicais defendem que a única saída duradoura para o problema é a reestatização da refinaria. “Sem a Petrobras no comando, a população do Norte continuará pagando a gasolina mais cara do país”, afirma Ribeiro.
A carta enviada ao presidente Lula ainda não teve resposta. A Petrobras foi procurada pela reportagem para comentar o pedido de retomada do refino no Amazonas, mas ainda não se posicionou oficialmente até o fechamento deste texto. O Brasil de Fato também procurou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o órgão responsável por combater o monopólio e proteger a livre concorrência no Brasil, e o Ministério de Minas e Energia (MME), mas não obteve respostas até a publicação desta reportagem.
Contatado pela reportagem do Brasil de Fato, o Grupo Atem enviou a seguinte nota:
O Grupo Atem informa que é absolutamente falsa a informação de que “reestruturações internas tenham rebaixado a refinaria ao papel de gerência de terminal terrestre”.
Como já divulgado reiteradas vezes, a redução temporária da produção em 2024 na Refinaria da Amazônia (Ream) decorreu de manutenção programada das unidades de refino, construídas na década de 1950. Cabe destacar que o processo foi devidamente comunicado e acompanhado por todos os órgãos reguladores competentes. Durante esse período, a refinaria manteve regularmente o abastecimento do mercado, sem qualquer interrupção, mesmo tendo enfrentado as maiores estiagens já registradas em sua área de atuação.
Dessa forma, além de repudiar a alegação de que a Ream tenha sido convertida em “gerência de terminal terrestre”, o Grupo Atem ressalta que, desde que assumiu a unidade em dezembro de 2022, vem realizando importantes investimentos na revitalização dos ativos da refinaria. A Ream esclarece e reforça, ainda, que sempre atendeu e continua atendendo a todos os pedidos efetuados por seus clientes e que todas as operações seguem rigorosamente a legislação vigente, plenamente alinhadas às normas dos órgãos reguladores, com os quais mantém diálogo institucional permanente.