Escrito por: Nossos adolescentes se educarão na escola ou na cadeia?
Antes de responder a esta pergunta é preciso aprofundar a reflexão sobre suas implicações. Em primeiro lugar, há necessidade de se destacar que está se discutindo o meio ou instrumento para se atingir um fim ou objetivo. A divisão entre meios e fins é fundamental para se compreender melhor a questão colocada. Portanto, a discussão sobre os objetivos deve preceder a escolha dos instrumentos. Deve-se antes escolher o modelo de homem e de sociedade que se deseja, para depois escolher os processos de educação e as instituições mais adequadas para educar crianças e adolescentes com esta orientação. Pode-se afirmar que, embora estejamos vivendo em uma sociedade regulada por mecanismos de segregação e exclusão, a grande maioria da população brasileira anseia por uma sociedade inclusiva, justa, participativa e desenvolvida cultural e politicamente.
Outra questão que se deve levantar é qual modelo de homem ou indivíduo será capaz de promover as necessárias mudanças em nossa sociedade. Hoje afirma-se que este adulto ideal deve ter capacidade de análise crítica, de conviver com a diversidade e pluralidade, dotado de caráter ético e compromisso com a cidadania. Só a posse destas capacidades poderá fazer de cada indivíduo um agente efetivamente transformador da nossa sociedade.
Se estes são os modelos de sociedade e de homem definidos como ideais, pode-se então escolher os meios mais adequados para constituí-los a partir da educação de nossas crianças e adolescentes. Crianças e adolescentes são indivíduos em condição peculiar de desenvolvimento e necessitam de proteção integral, afirmam vários estudos que embasaram normativas internacionais, e que lhes atribuíram direitos como forma de livrá-los de toda forma de privação, opressão ou crueldade. E assim que se pode assegurar-lhes uma formação integral e saudável.
A adolescência é o principal período do desenvolvimento humano para formação dos valores morais e éticos de qualquer indivíduo. E também um período de contestação de valores e crenças. Por isso, a adolescência é a fase do ideal para desenvolvimento dos juízos críticos e analíticos. Vários conflitos são vividos pelos adolescentes e a ajuda dos adultos é imprescindível para sua superação. O processo de aquisição de uma identidade pessoal e social está implicado com conflitos internos e externos, tornando este momento difícil para quem o vive. Os conflitos vividos passam pelas transformações ocorridas no próprio corpo, nas relações com os adultos e com as leis vigentes em nossa sociedade. O entendimento deste estágio do desenvolvimento e o cuidado dos adultos no amparo aos adolescentes é fundamental para estruturação de sua personalidade.
De que forma devemos então tratar os adolescentes quando entram em conflito com a lei, para que possam perceber sua atitude como inadequada e estruturar sua personalidade de forma não violenta? Neste ponto podemos reformular a pergunta inicial: Qual é a instituição mais adequada para transformar nossos adolescentes em adultos responsáveis e cidadãos capazes de contribuir significativamente para o desenvolvimento de nossa sociedade? O sistema penitenciário brasileiro foi criado para punir aqueles que infringem a lei. Atualmente está superlotado de indivíduos oriundos das camadas mais pobres de nossa população, devido à impunidade e corrupção reinantes no nosso sistema judiciário. Tem índices de reincidência que não deixam dúvida sobre a ineficácia de seus métodos. Milhares de presos cumprem longas penas vivendo no ócio absoluto e causando séria crise financeira no sistema. Não há investimento em ações reeducativas que permitissem a reflexão sobre os delitos praticados. A violência e a corrupção imperam nos presídios e penitenciárias, violando o direito a integridade física e moral, bem como reforçando a educação para condutas violentas e ilícitas. Destas instituições, os indivíduos podem sair mais violentos ou resignados e alienados. Também os preconceitos presentes em nossa sociedade dificultam a reintegração de egressos dos sistemas penitenciários e correcionais.
Uma sociedade justa e inclusiva deve combater todas as formas de violência. A violência não tem só a dimensão do delito ou da criminalidade. Mesmo esquecidas pelos meios de comunicação na maioria das vezes, estão presentes em nossa sociedade a violência da desproteção, do desemprego e da violação de direitos. Essas outras formas de violência, que estão baseadas em mecanismos de exclusão, eliminam a possibilidade de desenvolvimento da análise crítica e de valores éticos, indispensáveis para participação qualificada de cidadãos no processo de crescimento de nossa nação. Além disso, condena a população mais carente à exclusão, à simples reprodução de valores e à adaptação aos padrões culturais existentes, muitas vezes padrões violentos de segregação.
Por outro lado, o sistema de ensino atual em nosso país é um dos grandes responsáveis por este quadro, já que nossas escolas estão funcionando em condições extremamente precárias, não estão integradas à cultura das comunidades, contam com professores desmotivados e despreparados, utilizando métodos pedagógicos baseados na repetição, que não promovem a reflexão, nem o desenvolvimento da responsabilidade cidadã necessária às crianças e adolescentes que ali serão formados. O número de vítimas e o grau de vitimização causado por estas formas de violência são infinitamente maiores que o número de pessoas vitimizadas pela violência do delito, sem falar na relação de causa e efeito. Em todo o mundo existem estudos científicos que apontam a delinqüência como efeito da privação e da segregação. Estudos sobre violência doméstica revelam que os agressores atuais foram vítimas de violência ou abusos na infância. Cabe ainda lembrar que as soluções eficazes são aquelas que combatem as causas do problema e as ações pensadas sobre suas conseqüências são meros paliativos.
Na mesma linha, pode-se afirmar que o problema da violência praticada por adolescentes tem caráter social e não deve ser enfrentado apenas pelas forças policiais. O debate sobre a redução da idade de inimputabilidade penal associada à possibilidade de redução da violência está na superfície e não atinge a raiz do problema. Muitos têm colocado o debate sobre a redução da idade para imputabilidade penal associada à questão da impunidade. As palavras são parecidas, mas as questões são muito diferentes. O adolescente com menos de 18 anos é inimputável, mas não impune, pois é responsabilizado por seus atos e responde por eles conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente em seu capítulo de medidas sócio-educativas. As medidas sócio-educativas, semelhantes às penas criminais, se dividem em: a advertência, a liberdade assistida, a semiliberdade (para casos de infrações consideradas leves ou médias) e a internação por períodos de até três anos (em casos de infrações graves). A diferença consiste no instrumento jurídico utilizado no processo. O que se propõe é a utilização do Código Penal para punição de atos infracionais cometidos por adolescentes com mais de 16 anos e a inclusão desses no sistema penitenciário.
A diferença básica é o caráter educativo ou punitivo no tratamento destinado a estes adolescentes que entraram em conflito com a lei. Para responder a proposta de redução da idade de inimputabilidade penal, precisamos antes decidir se desejamos uma sociedade inclusiva ou excludente. Se queremos cidadãos críticos e transformadores ou indivíduos alienados. Se acreditamos na educação pela reflexão ou pela punição e castigo. Se apostamos na redução da criminalidade proporcionando ao infrator a possibilidade de rever e refletir sobre suas ações ou castigando-o violenta e severamente. Atualmente a questão da violência tem tido grande destaque em todos os meios de comunicação do mundo. Muito espaço de mídia tem sido ocupado com a informação excessivamente detalhada de crimes bárbaros e a exposição de infratores capturados pela polícia. A população exposta a estas matérias está cada vez mais amedrontada e se sente completamente desamparada pelo Estado, que deveria proporcionar-lhe segurança. Há que se examinar melhor o limite entre a informação e a celebração da violência feita nestas matérias. A decorrente "heroificação" como criminosos de pessoas portadoras de distúrbios psíquicos, como o "maníaco do parque" ou do "assassino do Shopping", quase chega a sugerir aos jovens que os imitem. Existem ainda os programas infanto-juvenis que, permeados por cenas violentas, têm educado nossas crianças e adolescentes nesta direção.
Graças a esta forma de fazer jornalismo que cultua a violência, a indústria da segurança não pára de crescer. Aumenta o número de alarmes vendidos, de seguranças particulares contratados, cresce o número de empresas que vendem seguros familiares e residenciais, aumenta a venda de cães treinados, cercas eletrificadas e carros blindados. Os muros das casas sobem e as famílias, em prisões residenciais, perdem os espaços de convivência comunitária que se restringem mais e mais. Como conseqüência, nossa sociedade está perdendo espaços importantes de criação e convivência coletiva. Está desenvolvendo um individualismo sem precedentes. Com isto, perdemos todos. Perdemos a possibilidade de conviver com a diversidade e de ampliação de horizontes culturais. Atribuímos menor importância a valores como fraternidade, solidariedade e coletividade, imprescindíveis à construção do sentimento de Nação.
Somente após o exame pormenorizado de todo este contexto em que se insere a questão da violência e da adolescência é que se pode responder à proposta de redução de idade para imputabilidade penal. Pode-se concluir afirmando que se desejamos construir uma sociedade mais justa e inclusiva, se acreditamos que esta transformação social poderá ser realizada por cidadãos conscientes e éticos no desempenho de seu papel social, temos que nos mobilizar por uma ampla reforma no sistema de ensino do país para que a educação das futuras gerações passe pela valorização da vida coletiva e comunitária, ressaltando os direitos e responsabilidades de todos e que amplie os espaços de reflexão atribuindo-lhes a importância como ação educativa maior do que a simples punição. Caso contrário, continuaremos a vender nossa liberdade para comprar segurança.
Por último, vale lembrar que o problema da violência não é privilégio desta ou daquela classe social. E um problema que afeta a todos e, portanto, tem que ser enfrentado por todos com muita responsabilidade.
Max Dante é coordenador do Projeto Travessia
Texto originalmente publicado no sítio www.travessia.org.br