Artigo da presidenta da Fedeção Nacional dos Psicólogos destaca importância da luta por conceitos como igualdade de gênero
Fernanda Magano
Com característica humanista e foco no cuidado, a profissão atraiu, ao longo dos anos, um contingente muito maior de mulheres do que de homens. Hoje, mais de 70% da categoria é formada por mulheres, segundo pesquisas recentes. De fato, esse recorte de gênero não expressa um avanço tão claro assim, nem na significação de melhores postos de trabalho, tampouco na diferenciação em cargos de chefia.
Porém, na construção das atividades de entidades de classe, como conselhos profissionais, sindicatos e federações, a questão do gênero já se apresenta e de maneira combativa, o que reflete positivamente nas ações que envolvem psicólogas. A mulher que se envolve politicamente na construção de uma profissão regulamentada pode articular por igualdade de direitos entre homens e mulheres. É um exercício profissional pela cidadania e defesa dos direitos humanos.
Atuando no sistema prisional, percebo condições muito delicadas no exercício de minhas funções, como a dificuldade em atuar em presídios masculinos. Normalmente, os diretores de segurança são, em sua maioria, homens e impedem as atividades de grupo, alegando risco potencial à segurança. O problema é que nem sempre isso reflete a realidade; reflete, na verdade, uma visão machista de que nós, psicólogas, somos indefesas e corremos risco na presença dos malvados machos presidiários. Trata-se de um estigma produzido pelo sistema, da ordem do preconceito com a nossa condição de gênero e com a condição de quem vai receber o tratamento psicológico.
Identifico, ainda, a desigualdade em relação à mulher presa. O caso de Suzane Richthofen, a paulistana rica que matou os pais, é muito clássico. Condenada à mesma pena dos irmãos Cravinhos, seus comparsas no crime, teve a progressão ao regime semiaberto negada, enquanto a deles ficou garantida. Na maioria dos casos em que crimes graves envolvem casais, os homens saem muito mais rápido da prisão do que as mulheres. Vejo isso em minha prática profissional, o que entendo como parte de uma lógica capitalista, de achar que o homem responde à demanda de mercado, à questão do trabalho, à sustentação da família – longe de ser verdade absoluta. No caso de Suzane, nem mesmo a condição econômica muito favorável, fator decisivo em relações capitalistas, adiantaram. E isso já é outra marca do preconceito de gênero. Compõe leitura social de que a mulher no crime deve ser duplamente penalizada, por razão de esse tipo de comportamento não ser próprio do universo feminino.
Quanto à atuação de psicólogas na Saúde, nos deparamos com problemática no campo da construção das políticas nacionais. Na gestão da presidenta Dilma Rousseff, a construção da política de saúde da mulher ficou centralizada na Rede Cegonha, fato questionado pela Comissão Intersetorial de Saúde da Mulher, do Conselho Nacional de Saúde da Mulher (Cismu), uma vez que A Rede Cegonha tem como foco apenas a questão da reprodução. Os direitos sexuais e reprodutivos, o direito ao controle do corpo e toda a questão do temário bastante delicado do aborto ficam relegados a segundo plano.
Soma-se a isso as votações das 13 e 14ª Conferências Nacionais de Saúde, quando as organizações religiosas da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), muito organizadas, votaram em peso contra o tema do aborto, dificultando muito o avanço do debate, pertinente em grupos feministas, sobre direito ao próprio corpo, na perspectiva de ter o aborto como medida de prevenção de saúde. Como as estruturas de planejamento familiar ainda são categoricamente machistas, há indiscutível dificuldade em avançar no olhar feminista sobre a saúde da mulher.
E aí entra também um duplo preconceito, pegando a vertente de raça e de orientação sexual na questão LGBT, que enfrenta barreiras no atendimento e na orientação ginecológica para mulheres lésbicas. Acaba-se tendo uma leitura errônea de que, por ser LGBT, a mulher não precisa fazer preventivo. Por conta disso, deixam de se prevenir contra doenças graves, como o câncer do colo de útero, por exemplo.
Nas relações de trabalho, quando o Sindicato dos Psicólogos (SinPsi) e a Federação Nacional dos Psicólogos (FenaPSI) fazem negociações coletivas para garantir a consolidação das leis do trabalho, sempre procuram introduzir na Convenção Coletiva, além das questões salariais, de igualdade e de jornada de trabalho, cláusulas de gênero, na tentativa de garantir alguma isonomia, como em relação ae preconceito ou diferenciação na ascensão da carreira interna.
Dentro de todo esse contexto, hoje, no Dia Internacional de Luta das Mulheres, é preciso apoiar ações como a da CUT/SP, que está promovendo grande debate, no espaço do Sindicato dos Bancários, e à tarde seguirá em a marcha pelo centro da capital paulista, com o propósito de dar visibilidade social à data, usada comercialmente de maneira infeliz, reforçanso atitudes machistas.
Como psicóloga, fico feliz em poder celebrar a data deste ano, sabendo existir, na prefeitura atual, uma Secretaria da Mulher, com ações muito próximas às dos movimentos social e sindical. Uma Secretaria que chamou o movimento a opinar nos eixos de trabalho, fazendo interlocução com a Secretaria de Políticas para as Mulheres, do governo federal. O momento é de ações efetivas para a garantia dos direitos das mulheres.
O Dia da Mulher, como símbolo, é importante, mas muito mais importantes são os desdobramentos disso em ação cotidiana, tanto na política sindical – pensando em melhorias para as mulheres da categoria – como para as mulheres da sociedade paulista e quiçá da sociedade brasileira. Lutemos, sempre, pela superação de preconceitos, contra a violência de gênero, tão marcada ainda na sociedade e tão aberta, tão descarada.
Elemento a ser considerado, principalmente pela categoria das psicólogas, é debater a transformação social, sem apelar para o extremo da criminalização. Além da defesa da Lei Maria da Penha, precisamos estar atentos aos mecanismos de prevenção social e mudança de uma realidade. Ora, sabemos que o encarceramento de um homem que violenta uma mulher dura determinado tempo. Por isso, endosso a campanha do Laço Branco – trabalho de sensibilização dos homens que já estiveram envolvidos com a violência –, que é vinculada a organismos internacionais e tem forte apelo psicossocial, no sentido de reverter essa cultura da violência, para que ela não se repita em outro momento.
Do ponto de vista da psicologia, é necessário cuidar de quem praticou a violência, e não só penalizar ou criminalizar. Afinal, o criminoso pode não voltar a se relacionar com sua vítima, mas pode fazer outras vítimas. Tratar é fundamental. A campanha do Laço Branco, nesse sentido, faz seu dever de casa.
* Fernanda Magano é também diretora do SinPsi (Sindicato dos Psicólogos de São Paulo) e membro do Conselho Nacional de Saúde (CNS)