Escrito por: Maurício Hashizume e Rodrigo Rocha - Repórter Brasil

Fazenda de primo de ruralista mantinha...

Não era apenas a cerca demourões, por eles mesmos reconstruída a partir do desmatede mata nativa, que impunha limites à dignidade detrabalhadores da Fazenda Santa Mônica, em Natividade (TO). Alojados em cinco barracosde lona e madeira erguidos sob chão de terra em pontos isolados do imóvele próximos às frentes de trabalho, não tinham acesso a banheiros, águapotável, energia elétrica, leitos e alimentação minimamente decentes.


Expostos a riscos e intempéries para demarcar asfronteiras da propriedade e impedir a dispersão do gado do patrão há maisde mês, custeavam ainda as refeições (havia servidão por dívidas,pois os gastos com a comida eram subtraídos pelos "chefes debarraco"), as próprias ferramentas de trabalho e até ocombustível das motosserras.

Para completar o quadro de extrema precariedade, sofriam descontos ilegais dossalários na esteira do pagamento por produção e não recebiam osequipamentos de proteção individual (EPIs) exigidos para as atividades.Algumas das carteiras de trabalho estavam retidas com o empregadore muitos não descansavam sequer aos domingos. Viviam nessa situação 18empregados.

Outros oito estavam alojados num galpão de alvenaria mais próximo à sede daFazenda Santa Mônica, que servia também como garagem de tratorese depósito de ração, agrotóxicos e todo tipo de material que não tinhamais uso. Quatro tratoristas, dois mecânicos e dois ajudantes de serviçosgerais pernoitavam em colchões sujos e improvisados que ficavam até emcima de carroças. Também não havia banheiro e as instalações elétricasirregulares estavam expostas no ambiente completamente cheio de óleo.

No caso dos trabalhadores do galpão, houve registro também de jornadasexaustivas de mais de 13 horas por dia (das 6h às 19h). Nem operadores demotosserra responsáveis pela produção dos mourões enem tratoristas eram treinados e capacitados para operar asmáquinas.


Todo esse quadro foi flagrado pelo grupomóvel de fiscalização - formado por integrantes do Ministério doTrabalho e Emprego (MTE), do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da PolíciaRodoviária Federal (PRF) -, em janeiro deste ano, na propriedadede Emival Ramos Caiado Filho, primo do conhecido deputado federal RonaldoCaiado (DEM-GO).

Vice-líder de seu partido na Câmara Federal, Ronaldo atua como um dosprincipais expoentes da bancada ruralista, ampla coalizão que apresentaresistências dentro do Congresso para a aprovação de medidas mais severascontra escravagistas como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001,que expropria (sem indenizações) a terra de quem comprovadamente explorarmão de obra escrava.

O grupo móvel lavrou 22 autos de infração referentes à FazendaSanta Mônica. Entre eles: deixar de efetuar o pagamento integral do saláriomensal até o quinto dia útil do mês subsequente ao vencido; prorrogar a jornadade trabalho além do limite legal de duas horas diárias; deixar de concederdescanso semanal de 24 horas consecutivas; manter empregado trabalhando sobcondições contrárias às disposições de proteção ao trabalho, e admitir oumanter empregado sem o respectivo registro.

Em depoimento à fiscalização, o gerente confirmou ter contratado ostrabalhadores para a manutenção das cercas da fazenda semque houvesse o fornecimento de alojamento, alimentação, água potável,banheiro, utensílios básicos, ferramentas de trabalho e EPIs.


À Repórter Brasil, o advogado Breno Caiado,irmão e procurador do proprietário Emival, informou que a propriedade estavaarrendada a terceiros e foi devolvida ao dono "com suas cercas einstalações de moradia deterioradas e avariadas". Para fazer umareforma nas estruturas danificadas, adicionou Breno, houve o recrutamentodo grupo (a maioria com carteira assinada, segundo a fiscalização) que tomavabanho em córregos, utilizava o mato como banheiro e acabou flagrado pelosagentes.

Nas palavras do advogado, "não tinha outro jeito" de garantirmelhores condições no local, pois a infra-estrutura é precária e acarência é enorme na região. Os acampamentos, continuou, consistem naúnica forma possível - independemente do que exige a lei - paradar suporte a empreitadas particulares como a de construção decercas. Quando chovia, relataram as vítimas, os barracos ficavam alagados.

"Pouco tempo após o início das reformas, a fazenda passou por umafiscalização em que foram apontadas algumas irregularidades, na visão dosfiscais. Foram atendidas as exigências e concluídas as reformas",justificou Breno, que preferiu não responder outrasperguntas feitas pela reportagem.


Não quis se pronunciar, por exemplo, sobrea relação entre o flagrante e a atuação do primo de Emival,Ronaldo Caiado, no âmbito do Parlamento. Tampouco deu mais detalhes sobre aárea envolvida, o TAC e os outros negócios do proprietário,declarando apenas que a "Fazenda Santa Monica é exemplo de segurança,organização e higiene do trabalho".

Já a assessoria de Ronaldo Caiado (DEM-TO), que concorre à reeleição no próximopleito de outubro, declarou que o parlamentar não reponde pelaconduta de outrem e que não defende quem comete crimes. Sobre o possívelconstrangimento pelo fato de ter um primo envolvido diretamente em flagrante deescravidão enquanto a PEC do Trabalho Escravo aguarda votação, a assessoriadeclarou apenas que o congressista está disposto a tratardo assunto no momento em que o mesmo for colocado em pauta.

O valor bruto das rescisões dos trabalhadores foi calculado em R$ 198,6 mil,incluindo as indenizações por dano moral individual (ratificadas pelo MPT) quesomaram R$ 39,1 mil. A procuradora do trabalho Elisa Maria Brant de CarvalhoMalta, intregrante do grupo móvel, firmou ainda um Termo de Ajustamento deConduta (TAC) que designou a doação de um veículo utilitário ede equipamentos de tratamento odontológico para o distrito de Príncipe, emNatividade (TO), por dano moral coletivo.


Quando entrou em contato com asautoridades locais para acertar a destinação dos equipamentos por conta do TAC,a procuradora soube que o próprio empregador já tinha anunciado aoprefeito que faria "doações" por livre iniciativa, tentandodesvincular o pagamento do flagrante ocorrido.

O fazendeiro Emival é irmão de Sérgio Caiado (PP), que também concorre a umacadeira na Câmara Federal. Sérgio, que já exerceu o cargo nalegislatura passada, atua como presidente do partido em Goiás.Em 2005, Emival e Sérgio foram acusados pelo Ministério Público Federal (MPF)pelo atropelamento de um agente de segurança da Câmara dos Deputados noestacionamento dos fundos do Anexo IV.

Como proposta de transação penal, Emival, que dirigia o carro e teria atendidoordens de Sérgio, sugeriu doar cestas básicas e fraldas geriátricas a umaentidade beneficente de Brasília (DF) por seis meses e depositar R$ 1 milpara o Programa Fome Zero. O MPF aceitou a forma de punição do acusado,que foi confirmada no Supremo Tribunal Federal (STF).

Incentivos
O dono da área inspecionada é proprietário da Rialma CompanhiaEnegática S/A e possui duas usinas hidrelétricas - Santa Edwiges II (13mil kW) e Santa Edwiges III (11,6 mil kW), no Estado de Goiás.Foi ainda beneficiado por R$ 746,7 mil recursos do Fundo Constitucional deFinanciamento do Centro-Oeste (FCO) na compra de 1 mil matrizes e 34touros de gado nelore e custeio para outra fazenda que mantém em SãoDomingos (GO).


A Sul Amazônia S/A Terraplenagem eAgropastoril, que teve projetos aprovados pela Superintendência deDesenvolvimento da Amazônia (Sudam) e chegou a participar da carteira do Fundode Investimento da Amazônia (Finam), é a empresa de Emival por trás da SantaMônica. Em comunicado divulgado em 12 de abril deste ano, a Comissão deValores Mobiliários (CVM) suspendeu a Sul Amazônia e outras companhiaspelo descumprimento da obrigação de prestar informações á comissão há maisde três anos.

Outro proprietário que teve a fazenda flagrada com trabalho análogo àescravidão na mesma operação foi Reniuton Souza de Moraes. Detentor de umaconcessão do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para a exploraçãode areia em Goiás, Reniuton é dono da Fazenda Olho D’Água, em Monte Alegre deGoiás (GO), que tem 67,6 hectares de área e mantém como principal atividade acriação de gado de corte.

“Os resgatados [da Olho D´Água] estavam ligados a um empreiteiro que instalouuma carvoaria dentro da fazenda”, conta o auditor fiscal do trabalho Leandro deAndrade Carvalho, coordenador do grupo móvel. Dois adolescentes com menos de 18anos estavam entre os cinco libertados.


Segundo Leandro, os trabalhadores tinham debeber água dos córregos, não havia fornecimento de EPIs e as ferramentas detrabalho eram inadequadas. “Os alojamentos eram barracos feitos de alvenaria emadeira, totalmente improvisados”, conta. "Um deles parecia com umacampamento de selva. Parte da estrutura era feita com lonas plásticas”,complementa.

Não havia banheiro nas frentes de trabalho nem no alojamento; asnecessidades fisiológicas eram feitas nos matagais. Os carvoeiros estavamsem registro e recebiam uma diária de acordo com a produção. A jornada detrabalho se estendia enquanto houvesse luz do sol.

De acordo com a fiscalização, Reniuton cedeu 55 hectares aoempreiteiro José César Rodrigues, que ficaria responsável pela derrubada damata. José aproveitaria a madeira para produção de carvão e entregaria oterreno "limpo" para a implantação do pasto. Não havia dinheiroenvolvido na negociação entre as partes. "Esse tipo de acordo étípico nas regiões de fronteira [agrícola], mas se trata de umaterceirização ilícita", completa Leandro.


Um dos trabalhadores estava encarregado daderrubada das árvores e os outros enchiam os fornos e tiravam o carvão.Eles estavam na fazenda há dois meses, relata o auditor. “Eram de cidadespróximas e moravam na fazenda durante a semana. Nos fins de semana, voltavampara a casa”.

Reniuton assinou um TAC com o MPT. Foram pagas as verbas rescisóriase lavrados 12 autos de infração. Aos jovens, a procuradora Elisadeterminou a abertura de duas cadernetas de poupança com R$ 3mil por dano moral individual.