Mesa reuniu pesquisadoras da América Latina para discutir como renda, território, gênero, raça e políticas públicas moldam desigualdades e segurança alimentar no Brasil e na região
Parte do Seminário Internacional “Disputar a Renda, Reduzir Desigualdades”, realizado pelo Dieese em São Paulo nos dias 11 e 12 de dezembro, a mesa “Renda como instrumento de superação de desigualdades de gênero, raça, território e promoção da segurança alimentar” reuniu três renomadas pesquisadoras latino-americanas para uma análise das dimensões que estruturam desigualdades tanto no Brasil como nos demais países da região.
Participaram do debate Elisabetta Recine, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea); Magdalena León Trujillo, da Fundación de Estudios, Acción y Participación Social (Equador); e Tânia Bacelar, da Ceplan Consultoria Econômica e Planejamento (Recife). A mediação foi conduzida por Patrícia Pelatieri, diretora adjunta do Dieese e responsável pela Produção Técnica.
A mesa destacou que renda, políticas públicas, serviços de cuidado, desigualdades territoriais e participação social são peças inseparáveis para enfrentar injustiças estruturais que se manifestam de maneira particular entre mulheres, populações racializadas, trabalhadores pobres e territórios historicamente precarizados.
Segurança alimentar, sistemas públicos e participação social
Abrindo a mesa, Elisabetta Recine colocou a segurança alimentar no eixo das interdependências entre renda, políticas públicas e sistemas de abastecimento. Ela resumiu a trajetória institucional e civil que marcou a agenda no Brasil e afirmou que a fome é um problema político e social.
“O Brasil sempre conviveu, infelizmente, com a fome nas suas diferentes dimensões e consequentemente isso sempre foi uma agenda de luta social”, afirmou.
A pesquisadora também lembrou o papel das pesquisas da sociedade civil no diagnóstico da crise alimentar e fez um relato sintético do período recente. “É assim que a gente entra 2023 com 33 milhões de pessoas passando fome”, ela disse.
Elisabetta defendeu ainda que intervenções públicas estruturantes e espaços permanentes de participação social são essenciais para formular respostas que articulem abastecimento, produção local, compras públicas e orçamento: sem essa articulação, disse, não se resolve a insegurança alimentar.
Ao relacionar renda e proteção social, ela observou que a recuperação de programas e a recomposição de orçamentos têm impactos rápidos e mensuráveis sobre a condição alimentar das famílias — um efeito que só se mantém quando políticas e participação social se somam.
Economia feminista, autonomia e cuidados
Na sequência, Magdalena León Trujillo trouxe a perspectiva da economia feminista para ampliar o conceito de renda. “Não podemos disputar a renda se a gente não faz uma disputa da economia”, afirmou, defendendo que a disputa pela renda exige disputar a forma como se organiza a economia, passando pela produção, reprodução e formas de propriedade.
Magdalena criticou a mercantilização crescente das atividades de reprodução e cuidado ao explicar que mercantilização da vida significa “converter tudo o que se faz, o relacionamento e como troca de mercado.” Para ela, políticas que apenas tratem a pobreza como déficit monetário perdem de vista que mulheres, povos tradicionais e economias comunitárias produzem riqueza e reproduzem a vida em condições que não são capturadas pela métrica puramente monetária.
Ao relacionar trabalho, conhecimento e tecnologias emergentes, Magdalena ressaltou o papel das iniciativas comunitárias e da economia solidária como núcleos de resistência e geração de alternativa. “Quem é que mantém essa vida, dá um suporte para essa vida?”, questionou a pesquisadora, reivindicando políticas que reconheçam e recompensem esse protagonismo econômico não mercantilizado.
O “paradoxo nordestino”: mudanças econômicas e permanências sociais
Encerrando a mesa, Tânia Bacelar apresentou um diagnóstico territorial centrado no que chamou de “paradoxo nordestino”, explicando que mudanças econômicas importantes convivem com realidades sociais que tornam o Nordeste o “principal desafio do país”. Segundo Tânia, a região “permanece sendo um desafio para o Brasil” em termos de níveis e distribuição de renda.
Entre as transformações, ela destacou que o Nordeste interrompeu a perda de posição relativa no PIB e viu sua base produtiva se diversificar. “O colapso do antigo tripé pecuário-algodão-subsistência no semiárido abriu portas para a valorização do bioma Caatinga e o potencial da bioeconomia”. Ela explicou também que a região ampliou peso na indústria e nos serviços, com dinamismo nas cidades médias.
Um dado social emblemático, mostrado pela pesquisadora durante sua apresentação foi o de que “a seca não provoca mais o drama social que provocava no século passado e até no começo desse século”. Ela atribuiu o fato ao resultado de políticas como o Programa Um Milhão de Cisternas e de programas de transferência que estabilizaram renda em momentos críticos.
Síntese
Em resumo, Tânia descreveu transformações estruturais importantes nas últimas décadas:
Para a população rural do semiárido, observou, políticas sociais continuam essenciais. Programas como BPC/Loas e Bolsa Família exercem papel decisivo, pois “estabilizam a renda na hora do aperto”. O reajuste do salário mínimo também tem impacto positivo tanto entre trabalhadores formais quanto entre beneficiários.
Apesar dos avanços, a pesquisadora reforçou que persistem desigualdades profundas:
Mesmo com mudanças produtivas e melhorias sociais relevantes, o Nordeste permanece na base da distribuição de renda mensal real no país. Tânia concluiu que a região, apesar dos avanços, “se mantém como o principal desafio do país”.
Renda, território e justiça social
A mediação de Patrícia Pelatieri teve papel de ser um elo entre as falas das pesquisadoras. Patrícia evidenciou as convergências entre as apresentações. “Renda é condição necessária para autonomia e segurança alimentar, mas só produz mudanças duradouras quando integrada a políticas públicas, participação social, estratégias territoriais e reconhecimento do trabalho de cuidado”, disse.
Os principais pontos trazidos pelas convidadas destacaram que quando articulada a políticas estruturadas como segurança alimentar, participação social, economia feminista, serviços públicos, inclusão territorial, a renda é determinante para enfrentar desigualdades históricas.