Escrito por: Luiz R Cabral

Crítica do Rei do Ovo ao Bolsa Família é visão elitista e preconceituosa dos pobres

Empresário disse que programa, que já tirou milhões do mapa da fome, impediu que trabalhadores procurassem emprego. Mas 1,2 milhão de beneficiários do Bolsa Família entraram no mercado de trabalho em 2024

Lula Marques/Agência Brasil

Por trás da retórica de mérito e eficiência que o empresário Ricardo Faria, conhecido como o “Rei do Ovo”, dono de um patrimônio de R$ 17 bilhões e, simpatizante do neoliberalismo tenta imprimir à sua trajetória de sucesso econômico, esconde-se uma visão distorcida sobre o papel das políticas públicas no Brasil. Em entrevista recente à Folha de São Paulo, o dono da Global Eggs — conglomerado com operações em três continentes — afirmou que “as pessoas estão viciadas no Bolsa Família” e que isso teria contribuído para o “desastre” que seria contratar trabalhadores no Brasil.

A crítica de Faria se ancora na ideia de que o livre mercado resolveria todos os problemas, desde que o Estado deixasse de “se meter”. Ele compara o Brasil a uma selva de obstáculos, enquanto celebra os Estados Unidos como um paraíso onde se abre uma empresa em duas horas.

O outro lado da moeda

Em uma nota em conjunto, a CUT e as demais centrais sindicais se posicionaram sobre a declaração do empresário. Diz a nota:

“Em primeiro lugar, trata-se de uma visão equivocada sobre o trabalho formal. A história brasileira demonstra que os direitos trabalhistas foram instrumentos fundamentais de mobilidade social, alçando milhões à classe média e sustentando políticas públicas por meio da arrecadação tributária e previdenciária. A juventude pode, sim, desejar mais liberdade — e isso não é incompatível com emprego formal, digno, com todos os direitos. Pelo contrário: é justamente por meio da valorização do trabalho que se constrói uma sociedade justa, estável e próspera. E isso é plenamente possível em um país rico como o Brasil”.

Continua o comunicado: “Em segundo lugar, a fala sobre o Bolsa Família é não apenas ofensiva, mas profundamente desinformada. O programa é uma das mais bem-sucedidas políticas sociais do mundo, responsável por tirar milhões de brasileiros da miséria, da fome e da marginalização”.

“A armadilha ideológica embutida no discurso de Faria consiste em opor direitos e programas sociais ao desenvolvimento econômico — como se fossem excludentes. Essa é uma visão cínica e perversa, própria de quem quer perpetuar a pobreza para manter um exército de trabalhadores precarizados e baratos, à disposição de capitalistas que ainda vivem com a cabeça no século XIX. Isso, sim, é o retrato do atraso”. Afirma a nota assinada pelas centrais sindicais. Para ver a nota completa clique aqui.

Resultado do mercado de trabalho contradiz fala do empresário

O Bolsa Família também tem gerado impactos significativos sobre o mercado de trabalho e a economia. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, em 2024 foram criados 1,6 milhão de empregos formais, sendo que 98,7% dessas vagas foram preenchidas por pessoas inscritas no Cadastro Único — entre elas, 1,2 milhão de beneficiários diretos do programa.

A taxa de desocupação no país neste ano, é menor do que há uma década. No trimestre terminado em abril ficou em 6,6% apontou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Em 2014, o Brasil viveu o seu melhor momento no mercado de trabalho desde o início da série histórica, com média anual de desemprego de 4,8%. Naquele ano, 4,4% da população com 14 anos ou mais estavam desocupados. Cerca de 58,1% estavam empregados, e 62,5% faziam parte da força de trabalho.

Em 2023, mesmo com cenário econômico mais desafiador, o índice de desemprego foi menor: 4,2%. A proporção de ocupados subiu para 58,6%, e o total de brasileiros no mercado de trabalho chegou a 62,8%.

Bolsa Família reduz mortes e internações

Um levantamento inédito publicado pela revista The Lancet Public Health  , em 29/05, revelou que o Bolsa Família teve impacto direto na redução da mortalidade e das internações hospitalares no Brasil entre 2004 e 2019. De acordo com a pesquisa, conduzida por instituições como a Fiocruz, a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade de Barcelona, o programa evitou mais de 700 mil óbitos e 8 milhões de hospitalizações no período analisado.

A investigação avaliou dados de 3.671 municípios brasileiros — o equivalente a 87% da população nacional — e concluiu que os efeitos mais expressivos ocorreram entre crianças com menos de cinco anos e idosos com mais de 70. Em localidades com maior cobertura do programa e valores mais adequados de repasse, a mortalidade infantil apresentou queda de 33%, enquanto as internações de pessoas idosas foram reduzidas pela metade.

Alto retorno com baixo custo

O efeito multiplicador do programa sobre a economia também é expressivo. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2019, indica que cada 1% do PIB investido no Bolsa Família gera um crescimento de 1,78% na atividade econômica. Para cada R$ 1 investido, são adicionados R$ 2,40 ao consumo das famílias e R$ 1,78 ao PIB. Trata-se do maior retorno entre os programas sociais brasileiros. Para efeito de comparação, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) rende R$ 1,54 no consumo e R$ 1,19 ao Produto Interno Bruto.

Desigualdades socioeconômicas

Uma matéria publicada pelo governo federal mostra um estudo da PNAD Contínua, divulgado em 2023, confirmou o impacto do Bolsa Família na redução das desigualdades sociais no Brasil. No ano passado, 19% dos lares brasileiros receberam o benefício, com maior alcance nas regiões Norte (31,7%) e Nordeste (35,5%). Relançado no início do terceiro mandato do presidente Lula, o programa impulsionou a renda das famílias de baixa renda e contribuiu para a queda do índice de Gini nacional para 0,518 — o menor desde o início da série histórica em 2012.

Entre 2019 e 2023, o rendimento per capita das famílias beneficiadas subiu 42,4%, enquanto entre os não atendidos a alta foi de apenas 8,6%. A média de "outros rendimentos", como Bolsa Família, BPC e seguros, atingiu R$ 947 por pessoa, um recorde. A combinação de programas sociais e retomada do mercado de trabalho elevou a massa de rendimento domiciliar per capita a R$ 398,3 bilhões. Para o governo federal, o Bolsa Família segue sendo uma das principais ferramentas de combate à pobreza, como reforçou o ministro Wellington Dias.Veja a reportagem completa aqui.

Projeções futuras e reconhecimento internacional

Com base nos resultados acima, os pesquisadores estimam que, caso o programa seja ampliado até 2030, pode evitar outras 683 mil mortes e 8 milhões de internações. O médico e pesquisador Rômulo Paes, um dos idealizadores do programa, em um texto publicado na FioCruz, ressalta que o Bolsa Família serve como referência internacional em combate à desigualdade. “Ele está em sintonia com os compromissos da Aliança Global contra a Fome, lançada pelo Brasil no âmbito do G20”, afirma.

Resistência e desinformação

Apesar dos impactos comprovados, o Bolsa Família ainda enfrenta resistência de setores conservadores e é alvo frequente de desinformação. Em 2023, circularam nas redes sociais conteúdos falsos alegando que o IBGE escondia 37 milhões de desempregados que estariam vinculados ao programa — uma afirmação desmentida pela metodologia da PNAD Contínua, alinhada aos critérios da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Duas décadas de transformação social

Em 2003, diante de um país marcado por desigualdades, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o compromisso de combater a fome com o lançamento do programa Fome Zero. A cidade piauiense de Guaribas, uma das mais pobres do Brasil, tornou-se símbolo da iniciativa, recebendo ações de infraestrutura, inclusão social e segurança alimentar.

Naquele mesmo ano, foi criado o Bolsa Família, unificando programas sociais para garantir renda mínima às famílias mais vulneráveis. A primeira rodada de pagamentos beneficiou 1,15 milhão de lares. Ao longo dos anos, o programa se consolidou como referência mundial, ajudando o Brasil a sair do mapa da fome em 2014, segundo a ONU.

Após o desmonte de políticas sociais a partir de 2016, o país voltou ao mapa da fome em 2022, com 33,1 milhões de brasileiros sem acesso regular a alimentos. Com a volta de Lula à presidência em 2023, o Bolsa Família foi relançado com novas diretrizes: valor mínimo por pessoa, adicionais para crianças, gestantes e nutrizes, além da Regra de Proteção, que permite a permanência no programa mesmo com aumento de renda.

O novo formato também reforça o conceito de família como base da política pública e busca integração com outras áreas sociais. Estudo da Fundação Getúlio Vargas e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada aponta que 19,7 milhões de famílias já estavam protegidas da pobreza em agosto de 2023, e três milhões melhoraram sua renda entre março e aquele mês.

Com informações do  The Lancet Public Health, Fiocruz, MDS, Ipea, Dieese, Secretaria Social da Presidência da República