Escrito por: Luiz Carvalho
Para especialistas, violência é resultado de machismo, impunidade e ausência do Estado
Educar agressores e não responsabilizar a vítima (Foto de manifestação na Paulista - Rovena Rosa)
O estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro na última semana serviu como fagulha para um debate que, em tempos de transformação daquilo que era motivo de vergonha em razão de orgulho, demonstrou a urgência da discussão sobre até onde avançamos e em quais campos precisamos avançar na luta pela igualdade de gênero.
Por um lado, o caso permitiu debater se a sociedade brasileira está preparada para impedir crimes assim e atender vítimas de uma das mais abjetas formas de violência, mas também expôs que muita gente, inclusive representantes do poder público, ainda responsabiliza por agressão a mulher que sofre a violência.
Os números são vergonhosos: segundo dados do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2014, a cada 11 minutos alguém é violentado no Brasil. Naquele ano, foram 47,6 mil pessoas, um cenário que, para a antropóloga e professora da PUC-SP, Carla Cristina, tem relação direta com o avanço do conservadorismo no mundo todo.
“Os estupros coletivos têm aumentado por conta de uma onda conservadora forte que tem como uma das características o aumento da violência contra a mulher. Isso é perceptível também em Honduras, México e Índia”, diz.
Os dados, porém, devem ser considerados uma estimativa porque, como ressalta a apoiadora em unidades de saúde Laís Dutra muitos casos não são notificados.
“A violência atinge mulheres de diferentes classes sociais, inclusive, classe média e alta, mas, muitas vezes, não chegam até nós porque não utilizam o serviço público de saúde”, fala.
Enquanto o perfil da vítima é variado, o do agressor costuma ser sempre o mesmo. “Mais de 80% dos casos de violência que atendemos na rede pública são praticados por conhecidos, ex-namorados, familiares ou alguém do bairro. No caso da violência urbana, o assédio que ocorre na rua, responde por cerca de 20% das situações.”
Expressão de desigualdade
Para a advogada, mestra em Sociologia Política pela USP e uma das fundadoras da Rede Feminista de Juristas, Marina Ganzaroli, a violência é a expressão máxima da desigualdade de poder.
“É essa diferença de papéis entre gêneros, que se reflete também na desigualdade salarial,que naturaliza a violência e causa a cultura do estupro, permitindo que a TV aberta e as novelas naturalizem isso. No ano passado, por exemplo, havia numa novela uma cena de estupro romantizada”, recorda.
Marina acredita que essa formação de consciência dominante atua em duas frentes, por um lado, transformando a mulher em objetivo e, por outro, atrelando-a ao espaço doméstico com responsabilidades familiares que cabem exclusivamente a ela.
“Não à toa, até pouco tempo, as meninas achavam que era normal não reagir a agressões domésticas.”
Segundo ela, a cultura de estupro inclui ainda a culpabilização da vítima. “Assim como o empoderamento das mulheres tem evoluido, formas de violência contra elas também. É de se assustar os comentários que se você vê no Facebook e na grande mídia, o caráter de naturalização da violência e a misoginia”, destaca.
Estamos preparados?
Para piorar, a agressão não termina quando o estuprador vai embora porque, para Marina, o Estado não está preparado para atender a mulher.
“A vitima tem de reviver a violência ao contar o caso para um servidor, muitas vezes homem, ou, quando é mulher, mesmo em delegacias da mulher, que têm uma postura machista.
Tentam promover a conciliação do casal nos casos em que ela é vítima e precisa de medida protetiva. Passa pelo escrivão, delegado, promotor, juiz e a sensibilidade é praticamente ausente. Além de ter de ouvir perguntas como “por que estava na rua em determinada hora?”, “por que bebeu?”, “deu sinal que queria?”, “com qual roupa estava?”. A pergunta deve ser: houve consentimento?”
Por conta disso, a Rede Feminista de Juristas luta pela valorização do testemunho da violência sexual, porque, em muitos casos não há prova da ação. Outra trincheira que precisa de atenção são ações de segmentos conservadores do Congresso Nacional ainda comandado pelo ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
Um projeto de Cunha, aliado de Michel Temer e liderança da bancada da Bíblica, criminaliza quem induzir ou orientar gestantes que correm risco de vida ou são vítimas de estupro sobre o acesso ao aborto legal, previsto na Constituição.
“Em caso de estupro há um protocolo legal que deve ser seguido e inclui coquetel antiviral, a chamada pílula do dia seguinte e a possibilidade de aborto legal. E isso o Cunha busca derrubar”, explica.
A apoiadora da saúde Laís Dutra lembra que, ao contrário do que diz o senso comum, a prática do aborto ainda leva muitas mulheres à cadeia. “Em São Bernardo, eu conheci um caso de uma mulher que induziu o aborto, foi algemada na cama e atendida assim. Depois, foi levada para a delegacia”, recorda.
Atendimento direto – Ainda sobre a questão estrutural, ela acredita que os diversos segmentos do Estado devem estar alinhados para que medidas positivas possam se tornar eficientes.
“Temos a Lei Maria da Penha, construída com participação da sociedade e que é muito progressista, mas depende de outros setores para funcionar. Em São Paulo, algumas delegacias de mulher não são 24 horas e não funcionam aos finais de semana, justamente quando ocorrem muitos casos de agressão por conta de bebidas e festas. A responsabilidade, portanto, é do governo estadual nessa situação.”
Laís tem opinião semelhante. “Em nível nacional, durante os governos Lula e Dilma, tivemos vários avanços de políticas públicas. Ministério das Mulheres, conferências, a própria Lei Maria da Penha, o Disque 180. Mas os outros equipamentos precisam receber recursos, investimentos, só que isso não acontece. Uma demonstração de como as mulheres não são prioridade num modelo de política dominado por homens”, define.
O que podemos fazer?
Todas elas acreditam que além de cobrar o Estado para que cumpra suas obrigações e ofereça estrutura para atender a vítima, é preciso fazer o trabalho preventivo de combate ao machismo. E essa luta passa pela educação.
“Devemos ensinar os meninos a respeitarem as mulheres e não as mulheres a se protegerem. É outra masculinidade que fará com que isso não aconteça mais. Talvez ensinar outro tipo de paternidade para outro tipo de relação afetiva entre as pessoas que possa fazer com que o respeito aumente. Fundamentalmente, educar para a diversidade e para que os meninos respeitem todos os humanos que não sejam eles”, defende a antropóloga Carla Cristina.