Escrito por: Carlos Lopes/Hora do Povo

Celso Furtado e suas reflexões sobre a...

Temos que voltar à ideia de projeto nacional, recuperando para o mercado interno o centro dinâmico da economia

 

Em meados do ano 2000, com 80 anos, Celso Furtado redigiu “Reflexões sobre a crise brasileira”, publicado na Revista de Economia Política, em sua edição de outubro-dezembro do mesmo ano.

A preocupação do nosso maior economista e historiador econômico era a crise provocada pelo governo Fernando Henrique, e seu infame entreguismo neoliberal, no país. Por isso, ele concentrou-se em relacionar duas questões: o desenvolvimento das forças produtivas e o da cultura nacional. Furtado sentia que a dominação ideológica, o servilismo a padrões e matrizes estranhas ao país, era o grande obstáculo para o nosso desenvolvimento, entendido no sentido que ele afirmara muito antes, ao distinguir, exatamente, crescimento e desenvolvimento econômicos como dois conceitos que não se confundiam.

“O processo de globalização interrompeu o avanço na conquista de autonomia na tomada de decisões estratégicas. Se submergimos na dolarização, estaremos regredindo ao estatuto semicolonial”, dizia Furtado, quando outros tratavam aquele processo terrível de destruição do país como uma “modernização”.

“Com efeito”,continuava, “se prosseguimos no caminho que estamos trilhando desde 1994, (…) o Passivo Brasil inchará em um decênio de forma a absorver a totalidade da riqueza que acumulamos desde a proclamação da Independência”.

Mais uma vez ele foi ao fulcro da questão: “Impõe-se formular a política de desenvolvimento a partir de uma explicitação dos fins substantivos que almejamos alcançar, e não com base na lógica dos meios imposta pelo processo de acumulação comandado pelas empresas transnacionais”. Mais adiante, ele explicita essa ideia:  “Se admitimos que nosso objetivo estratégico é conciliar uma taxa de crescimento econômico elevada com absorção do desemprego e desconcentração da renda, temos de reconhecer que a orientação dos investimentos não pode subordinar-se à racionalidade das empresas transnacionais”.

Então, que racionalidade era, para Furtado, a necessária para o país?

“... temos que voltar à ideia de projeto nacional, recuperando para o mercado interno o centro dinâmico da economia”.

Portanto, a questão era a atualidade do nacional-desenvolvimentismo. Por isso, a recuperação da cultura nacional era parte imprescindível desse próprio processo.
O texto que publicamos hoje é uma condensação da íntegra desse belo e importante ensaio.

CELSO FURTADO

O autoritarismo político, que a partir de 1964 neutralizou por duas décadas todas as formas de resistência dos excluídos, exacerbou as tendências antissociais do nosso desenvolvimento mimético. Esse autoritarismo, como um deus mitológico, apresentou duas faces. Se, por um lado, favoreceu os interesses criados da área econômica, por outro agravou o isolamento da esfera política, que adquiriu crescente autonomia sob a forma de poder tecnocrático. Implantou-se a fantasia geopolítica aberrante da “potência emergente”. Aí tem uma de suas raízes o processo de endividamento externo, que nos levou a uma situação de desgoverno sem precedente neste século.

O desenvolvimento, gerado endogenamente, requer criatividade no plano político, e esta se manifesta quando à percepção dos obstáculos a superar adiciona-se um forte ingrediente de vontade coletiva. O refinamento da sensibilidade e o estado de lucidez aguda que se manifestam em indivíduos superdotados nos momentos de crise social podem imprimir excepcional brilho a épocas consideradas de decadência. Mas somente uma liderança política imaginativa será capaz de conduzir as forças criativas para a reconstrução de estruturas avariadas e para a conquista de novos avanços na direção de formas superiores de convivência social.

Em épocas de crise como a que vivemos cumpre deixar de lado muitas das idéias recebidas, particularmente as explicações que pretendem ignorar as responsabilidades morais das elites. Temos o dever de nos interrogar sobre as raízes dos problemas que afligem o povo e repudiar posições doutrinárias fundadas num reducionismo econômico. O processo de globalização interrompeu o avanço na conquista de autonomia na tomada de decisões estratégicas. Se submergimos na dolarização, estaremos regredindo ao estatuto semicolonial. Com efeito, se prosseguimos no caminho que estamos trilhando desde 1994, buscando a saída fácil do crescente endividamento externo e o do setor público interno, o Passivo Brasil inchará em um decênio de forma a absorver a totalidade da riqueza que acumulamos desde a proclamação da Independência. Seria leviandade desconhecer que enveredamos por um caminho que nos conduz a um grave impasse.

É certo que a causa imediata da crise que acabrunha o país foi o forte desequilíbrio da balança de pagamentos para o qual concorreram fatores de origem interna e externa. Mas, que esperar de um processo de crescimento que derivava seu dinamismo da reprodução indiscriminada de padrões de consumo de sociedades que já alcançaram níveis de produtividade e bem-estar muitas vezes superiores aos nossos? Como não perceber que os elevados padrões de consumo de nossa chamada alta classe média tem como contrapartida a esterilização de parte substancial da poupança e aumenta a dependência externa do esforço de investimento? As tensões estruturais que daí resultam estão na origem das pressões inflacionárias incontroláveis. Nessas circunstâncias, o custo da estabilidade de preços tende a ser a recessão.

Portanto, a crise que agora aflige nosso povo não decorre apenas do amplo processo de reajustamento que se opera na economia mundial. Em grande medida ela é o resultado de um impasse que se manifestaria necessariamente em nossa sociedade, a qual pretende reproduzir a cultura material do capitalismo mais avançado privando a grande maioria da população dos meios de vida essenciais. Não sendo possível evitar que se difundam, de uma ou outra forma, certos padrões de comportamento das minorias de altas rendas, surgiu no País a contrafação de uma sociedade de massas em que coexistem formas sofisticadas de consumo supérfluo e carências essenciais no mesmo estrato social, e até na mesma família.

Somente a criatividade política impulsada pela vontade coletiva poderá produzir a superação desse impasse. Ora, essa vontade coletiva requer um reencontro das lideranças políticas com os valores permanentes de nossa cultura. Portanto, o ponto de partida do processo de reconstrução que temos de enfrentar deverá ser uma participação maior do povo no sistema de decisões. Sem isso, o desenvolvimento futuro não se alimentará de autêntica criatividade e pouco contribuirá para a satisfação dos anseios legítimos da nação.

Impõe-se formular a política de desenvolvimento a partir de uma explicitação dos fins substantivos que almejamos alcançar, e não com base na lógica dos meios imposta pelo processo de acumulação comandado pelas empresas transnacionais. A superação do impasse com que nos confrontamos requer que a política de desenvolvimento conduza a uma crescente homogeneização de nossa sociedade e abra espaço à realização das potencialidades de nossa cultura.

Em uma época em que os que detêm o poder estão seduzidos pela mais estreita lógica ditada por interesses de grupos privilegiados, falar de desenvolvimento como reencontro com o gênio criativo de nossa cultura pode parecer simples fuga na utopia. Ora, o utópico muitas vezes é fruto da percepção de dimensões secretas da realidade, um afloramento de energias contidas que antecipa a ampliação do horizonte de possibilidades aberto a uma sociedade. A ação de vanguarda requerida constitui uma das tarefas mais nobres a serem cumpridas pelos trabalhadores intelectuais nas épocas de crise. Cabe a estes aprofundar a percepção da realidade social para evitar que se alastrem as manchas de irracionalidade que alimentam o aventureirismo político; cabe-lhes projetar luz sobre os desvãos da história, onde se ocultam os crimes cometidos pelos que abusam do poder; cabe-lhes auscultar e traduzir as ansiedades e aspirações das forças sociais ainda sem meios próprios de expressão.

RAÍZES HISTÓRICAS

O debate sobre as opções com que nos defrontamos exige uma reflexão serena e corajosa sobre a cultura brasileira. A ausência dessa reflexão é responsável pelo fato de que nos diagnósticos da situação presente e em nossos ensaios prospectivos nos contentemos com montagens conceituais sem raízes em nossa história.

Começaremos por indagar sobre as relações existentes entre a cultura como sistema de valores e o processo de acumulação que está na base da expansão das forças produtivas. Trata-se de contrastar a lógica dos fins, que rege a cultura, com a dos meios, razão instrumental inerente à acumulação puramente econômica.

Como preservar o gênio inventivo de nossa cultura em face da necessidade de assimilar técnicas que, se aumentam nossa capacidade operacional, são vetores de mensagens que mutilam nossa identidade cultural? Simplificando: como apropriar-se do hardware da informática sem intoxicar-se de seu software, os sistemas de símbolos que com freqüência ressecam nossas raízes culturais? Esse problema apresenta-se hoje em graus diversos por todas as partes, à medida que a produção de bens culturais transformou-se em negócio ciclópico e em que uma das leis que rege esse negócio é a uniformização dos padrões de comportamento, base da criação dos grandes mercados e ao mesmo tempo causa da crescente exclusão social.

Problemas desse grau de complexidade não têm solução única nem ótima. Os objetivos que motivam o progresso tecnológico são com freqüência contraditórios. Uns orientam-se para a destruição, outros para a preservação. Os avanços da técnica estão a serviço de uns e outros. É engano imaginar que as técnicas são neutras, pois elas refletem as forças culturalmente dominantes. As artes militares são fruto dos instintos belicosos do homem mas nem todas as civilizações são igualmente guerreiras. Demais, as técnicas se interligam, se alimentam umas às outras. Neste século que termina, as técnicas que mais avançaram, que contaram com financiamentos mais abundantes, são as ligadas às artes da guerra. Os demais campos da cultura estiveram expostos a seus efeitos indiretos.

São muitas as incógnitas do problema a equacionar para responder às perguntas: onde estamos e para onde vamos? Mas se o circunscrevemos aos elementos sobre os quais podemos atuar, comprovamos sem dificuldade que a questão central se limita a saber se temos ou não possibilidade de preservar nossa identidade cultural. Sem isso seremos reduzidos ao papel de passivos consumidores de bens culturais concebidos por outros povos.

É evidente que o maior acesso a bens culturais melhora a qualidade de vida dos membros de uma coletividade. Mas, se fomentado indiscriminadamente esse processo, frustram-se formas de criatividade e descaracteriza-se a cultura de um povo. Daí que uma política cultural que se limita a fomentar o consumo de bens culturais importados tenda a ser inibidora de atividades criativas e imponha barreiras à inovação. Em uma época de intensa comercialização de todas as dimensões da vida social, o objetivo central de uma política cultural deverá ser a liberação das forças criativas da sociedade. Não se trata de monitorar a atividade criativa, e sim de abrir espaço para que ela floresça.

Necessitamos de instrumentos para remover os obstáculos à atividade criativa, venham estes de instituições venerandas que se dizem guardiãs da herança cultural, de comerciantes travestidos de mecenas ou do poder burocrático. Trata-se, em síntese, de defender a liberdade de criar, certamente a mais vigiada e coarctada de todas as formas de liberdade. Portanto, essa terá que ser uma conquista do esforço e da vigilância daqueles que crêem no gênio criativo de nosso povo.

Se admitimos que nosso objetivo estratégico é conciliar uma taxa de crescimento econômico elevada com absorção do desemprego e desconcentração da renda, temos de reconhecer que a orientação dos investimentos não pode subordinar-se à racionalidade das empresas transnacionais. Devemos partir do conceito de rentabilidade social a fim de que sejam levados em conta os valores substantivos que exprimem os interesses da coletividade em seu conjunto. Somente uma sociedade apoiada numa economia desenvolvida com elevado grau de homogeneidade social pode confiar na racionalidade dos mercados para orientar seus investimentos estratégicos. Essa discrepância entre racionalidade dos mercados e o interesse social tende a agravar-se com a globalização. No caso da indústria automotora o problema parece simples, pois as empresas são de capital estrangeiro e o avanço tecnológico significa aumento dos custos em divisas. Mas, tratando-se de empresas nacionais, o mesmo fenômeno pode-se apresentar, pois a tecnologia mais avançada também se traduz em aumento de custos em divisas com crescente pressão na balança de pagamentos. Contudo, não é esse o problema principal e sim o impacto negativo no plano social. A tecnologia tradicional que segue a linha do fordismo tende a ser substituída pela organização em equipes em busca de flexibilidade, o que reduz a capacidade dos assalariados de organizarem-se em poder sindical. Esse problema se apresenta de forma aguda no capitalismo mais desenvolvido, a começar pelos Estados Unidos, e está na raiz da tendência generalizada para a concentração da renda.

Alcançamos, assim, o âmago do problema colocado pelo avanço tecnológico. A orientação assumida por este traduz a necessidade de diversificar o consumo dos países de elevado nível de vida . As inovações nas técnicas de marketing passaram a ter importância crescente. A sofisticação dos padrões de consumo dos países ricos tende a comandar a evolução tecnológica. Só assim se explica o desperdício frenético de bens descartados como obsoletos e as brutais agressões na fronteira ecológica.

Regressamos, portanto, ao início de nossa exposição, quando afirmamos a imprevisibilidade da evolução das técnicas do sistema capitalista. O dinamismo deste é compulsivo e leva a fases recorrentes de tensões de resultados imprevisíveis. Grandes destruições causadas por guerras abriram o caminho a fases de extraordinária prosperidade. É dentro desse quadro de incertezas que devemos indagar em que direção caminhará nosso país? Se adotamos a tese de que a globalização constitui um imperativo tecnológico inescapável, que levará todas as economias a um processo de unificação de decisões estratégicas, teremos de admitir que é reduzido o espaço de manobra que nos resta. O Brasil é um país marcado por profundas disparidades sociais superpostas a desigualdades regionais de níveis de desenvolvimento, portanto frágil em um mundo dominado por empresas transnacionais que tiram partido dessas desigualdades.

PROJETO NACIONAL

A globalização opera em benefício dos que comandam a vanguarda tecnológica e exploram os desníveis de desenvolvimento entre países. Isso nos leva a concluir que países com grande potencial de recursos naturais e acentuadas disparidades sociais — caso do Brasil — são os que mais sofrerão com a globalização. Isso porque poderão desagregar-se ou deslizar para regimes autoritários de tipo fascista como resposta às tensões sociais crescentes. Para escapar a essa disjuntiva temos que voltar à idéia de projeto nacional, recuperando para o mercado interno o centro dinâmico da economia. A maior dificuldade está em reverter o processo de concentração de renda, o que somente será feito mediante uma grande mobilização social.

Temos que preparar a nova geração para enfrentar grandes desafios pois se trata de, por um lado, preservar a herança histórica da unidade nacional, e por outro, continuar a construção de uma sociedade democrática aberta às relações externas. Como as possibilidades de crescimento do mercado interno são grandes, há espaço para uma colaboração positiva da tecnologia controlada por grupos estrangeiros. Numa palavra, podemos afirmar que o Brasil só sobreviverá como nação se transformar numa sociedade mais justa e preservar sua independência política. Assim, o sonho de construir um país capaz de influir no destino da humanidade não se terá desvanecido.